UMA CAMPANHA “LIBERTÁRIA” CONTRA O ESTADO

 

 

 

 

     Antes, uma introdução ao tema.

 

    O meu Tricolor, tantas vezes campeão, do qual me confesso devota incondicional, publicou em sua página do Facebook um mapa-múndi com diversos pontos destacados mais o seguinte texto: “TRICOLOR EM TODA TERRA: Além do nosso país do coração, tricolores de todo o mundo marcam presença nesse aniversário do Fluminense Football Club aqui no Facebook! E vocês? Deixem a sua saudação tricolor diretamente do seu país!” Muita gente simpática, uma gente tricolor de coração no mundo inteiro, deixou ali sua saudação. 

 

    Marcel Claude também está no Facebook. E também pede saudações supranacionais. Marcel Claude não é uma celebridade esportiva nem é um cientista louco francês – assim como Michelle Bachelet e outros mais, ele é candidato à Presidência do Chile nas eleições que se farão no próximo Novembro. Do Chile, aqui, em nosso bairro. É o representante do Partido Humanista.

 

    Humanismo por humanismo, durante esta última semana, alguns Deputados chilenos protocolaram “um projeto de lei que prevê a aplicação da Lei de Anistia a todos os civis e militares condenados por crimes de violação aos direitos humanos ocorridos durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990)”. Justificaram esse projeto alegando que “a palavra ‘anistia’ vem do termo grego ‘amnesis’, que significa ‘esquecer o passado’. Esse importante instrumento jurídico serve especialmente para situações revolucionárias, nas quais se faz necessário e conveniente que os poderes do Estado renunciem temporariamente à sua faculdade de julgar e castigar determinadas condutas delitivas, visando interesses superiores, como a ordem nacional e a paz social”. Apesar de que o argumento seja tão óbvio e tão universal, no Chile, a Lei da Anistia está “vigente, mas juízes usam tratados internacionais para condenar violadores dos direitos humanos”. O projeto dos Deputados chilenos foi “descoberto” pela Imprensa local e internacional, que fez “um barulho muito maior do que os seus autores talvez esperassem” [1]. Humanismo por humanismo, pois, resta saber a quem dada ordem serve; ou a quem interessa dar a ordem e a quem possa interessar o tumulto.

 

    Voltando ao candidato interessado em colocar-se com conforto em La Moneda, seu Programa de Governo, que anuncia ser capaz de “criar uma sociedade libertária”, expõe-se em “8 eixos transversais” (eixos por eixos, eles bem poderiam ser chamados de “monumentais”, tanto faz…). As palavras iniciais são: “A experiência histórica nos demonstrou que a concentração de poder estatal, assim como a concentração do capital, atenta contra a liberdade das pessoas e violenta os Direitos Humanos. Basta una rápida olhada [ao passado recente] … para constatar como a concentração de poder corrompe a sociedade.” Palavras que devem estar soando como música nos pavilhões de alguns ouvidos. O grito de campanha “Todxs [sic] a la Moneda con Marcel Claude” estende-se por “onde haja um chileno e por todo o mundo…”, para que o caminho mais seguro possa ser tomado… ou continuado para que o Chile seja destruído por inteiro e o mais breve possível riscado do mapa (e quem duvidar disso que confira se não é exatamente o que o candidato pretenderia [2]).

 

    No Facebook [3], saberemos que “está sendo articulada uma importante rede de apoio a Marcel Claude [composta] de chilenos residentes em diferentes países da Europa e, da mesma forma que no Chile, isso nasce da vontade e da convicção cidadã. Trabalhamos de maneira totalmente independente e autônoma e já conseguimos manter vínculos entre três países para dar mais coesão a esta campanha”. Há grupos formados na Suíça, na Suécia e na Alemanha; outros estão em processo de formação (seriam “Austria, Francia, Italia, Espania [sic], Noruega, Potugal [sic], Holanda, Finlandia, Belgica, Dinamarca, Irlanda y Rusia”). Essa “tarefa” deverá ser realizada por “todos os chilenos”, não importando onde estejam, pois “o tempo e a distância não são obstáculos para alcançar objetivos comuns!!!!” (assim mesmo, com esses 4 pontos de exclamação). E ninguém perguntou a esses chilenos residentes em diferentes países, especialmente na Europa, se eles pretendem voltar a viver no Chile ou, pressupondo que sim, por que razão ainda não o fizeram.

 

    Pois bem. Que tem uma coisa a ver com outra e, principalmente, que têm essas coisas todas a ver conosco? Por que trago isso tudo à baila? Explico. De uma torcida se espera muito ardor; não se espera, porém, muita coerência ou muita reflexão. Qualquer um, de qualquer nacionalidade, em qualquer lugar do mundo, poderá ser simpático a qualquer time esportivo (ou mesmo a qualquer única “celebridade” no esporte) e torcer pelo destaque de seus feitos, sejam quais forem as cores de sua bandeira. Com isso, o mundo em nada se altera. Já os objetivos de um time esportivo nunca serão os mesmos objetivos de um país qualquer e os problemas que possam uns e outros enfrentar nunca serão os mesmos, serão muito diferentes – mesmo porque entre times esportivos o jogo é um e entre países o “jogo” é outro, e nada “esportivo” este será. Os “objetivos comuns” dos chilenos que se põem em apoio a um candidato com um programa “libertário” podem perfeitamente ser identificados com os objetivos de alguns muitos brasileiros, tenham ou não tenham ainda um candidato de sua preferência concorrendo à nossa Presidência. E os métodos utilizados para alcançá-los não diferem muito de um país a outro. No Brasil, teremos eleições no próximo ano e, até agora, mesmo após anos e anos de desgoverno, não se vê nem se ouve qualquer proposta ou qualquer programa partidário sendo discutido. Embora os prováveis candidatos, inclusive o que venha a ser eleito, já estejam em campanha. Nesse processo, o papel dos meios de comunicação seria fundamental, e seria fundamental porque, à falta de boa Escola, esses meios, sejam formais ou informais, são quem nos “educa” e nos estimula a pensar e a agir.

*** 

 

    Agora, vamos ao grão.

    Algumas devoções e algumas aversões são tão gratuitas que não devem entrar, nem mesmo atravessadas, no rol das considerações de quem possa pretender pensar o Estado brasileiro com alguma seriedade. Sendo gratuitas, algumas serão inócuas, outras serão nocivas. E não digo isso porque minha consciência, avessa a quaisquer propostas “libertárias”, seja muito atrevida ou muito caprichosa.  Ela apenas reclama definições precisas e posturas conseqüentes. Por isso, tanto me surpreendem certas palavras que leio na Imprensa a respeito de nós mesmos e dos demais.

 

    Entre os jornalistas, há os que bem escrevem, são considerados “não comprometidos” com o Governo atual e não cansam de apontar seu dedo a nossos problemas. Como escrevem sobre Política, é de se supor que não escrevem para nos divertir, mas, sim, para nos informar – quando não para nos orientar. O rol desses problemas que nos afligem é bastante longo, e comentá-los preencherá muitas e muitas páginas em branco com muito êxito, sem dúvida alguma, muitas delas muito bem escritas. Apontar esses problemas, porém, não nos ajuda a resolvê-los. Nem nos ajuda a querer resolvê-los. Muito menos significa agir ou reagir. É apenas apontar. E reclamar. Apontando-os, não mais que os apontando, mesmo que corajosamente, mesmo que exaustivamente, que esperam os jornalistas? Aumentar nossa capacidade de nos queixar e o volume de nossos queixumes? Que os problemas se acumulem, mais se agravem, tudo logo se arrebente e alguém (?) se predisponha a nos acudir no próximo campeonato? Quem?

 

    Nossos problemas não mais pedem ser apontados, pois nos saltam aos olhos e nos ferem a carne. A qualquer um que esteja minimamente consciente do vulto e da gravidade de nossos problemas internos e externos (que não se resumem à distribuição de bolsas e cestas básicas, a tentar alcançar um assento no Conselho de Segurança ou à eventual defesa do pré-sal dos ataques de quem exatamente ninguém sabe) causará muita angústia constatar o tempo e o espaço preciosos que a Imprensa desperdiça sem que um sentido correto possa ser atribuído às causas desses problemas e sem que qualquer direção correta seja sugerida para ocupar o pensamento e orientar as atitudes de tantos quantos possam pretender reagir buscando soluções. O que apenas dificulta, quando não impede, que qualquer reação consistente seja concebida. E, não sendo antes concebida, nenhuma reação poderá ser alinhavada. Muito menos qualquer projeto alternativo poderá ser aventado.

 

    Se há um tempo de semear e um tempo de colher, estamos agora em tempo de adubar boas sementes que restem, encruadas, em terra já lavrada, o que não pode ser confundido com um tempo de provocar mais confusão entre os confusos. Sendo assim, por mais que me esforce, não consigo compreender, por exemplo, que é o que justificaria um jornalista que se tem demonstrado extraordinariamente sagaz e corajoso no espaço de que goza para esclarecer o público, de repente nos sugerir, mesmo que por ira santa, mesmo que por brincadeira, que “Chega! Vamos fugir daqui! Deixemos o Brasil para os Peles-Vermelhas da Funai, os Peles-Verdes da Marina e os padres de tacape. Que as vastas solidões se inundem de sapos e pererecas coaxando eternidade afora! (…) O que está desarrumado é o Brasil. (…) Vamos embora deste lugar, gente! (…) é chato esse negócio de tentar produzir comida tendo de enfrentar os peles-verdes, os peles-vermelhas e os caras de pau.” (Reinaldo Azevedo em 01/06/13 [4]). Que pretenderá com isso? Estimular o leitor? Qual leitor? Estimular a quê? A refletir em para que haveria de querer suas pernas?

 

    Quantos de nós, muitos aos quais competência não faltava, nem faltou covardia, já não nos abandonaram por iniciativa própria, por serem seduzidos ou por serem induzidos a imaginar que “lá fora” tudo será, sem demandar qualquer esforço, mais bonito, mais ameno, mais perfeito e mais justo, inclusive as ambições não só individuais como nacionais, sem considerar que a solução de seus problemas haveria de criar mais um problema, a todos nós que aqui ficamos, ou agravá-los todos? Devemos agora todos “fugir daqui”, ir “embora deste lugar” porque “é chato” ter que pensar em arrumar o que foi desarrumado ou o que nunca bem arrumado foi? Espalhados pelo mundo, saberemos opinar mais adequadamente a respeito de qual projeto será mais adequado ao nosso vasto território? Não seremos, muitos mais e mais ainda, levados a crer – uma vez que a tendência já se impõe entre nós – em que uma solução política e ecologicamente correta seria a de que esse território fosse inundado de sapos e pererecas e assim permanecesse eternidade afora? Por quanto tempo duraria essa eternidade? Por quanto tempo, com nossa ausência e nosso descaso, sendo inundadas de sapos e pererecas, essas vastas solidões permaneceriam sendo vastas e sendo solidões? Ou isso pouco nos deve importar?

 

    A influência do pensamento de Reinaldo Azevedo sobre determinados círculos intelectuais é considerável. Não sendo eu uma idiota, compreendo perfeitamente que a sugestão absolutamente idiota que nos deu terá sido irônica. Mas, se tão poucos de nós são capazes de perceber uma obviedade, quantos de nós serão capazes de compreender uma ironia? Por outro lado, se “o Brasil está desarrumado”, qual o correto arranjo que a ele deveremos dar? Algum? Nenhum? Se os problemas não mais são desconhecidos, e por ninguém mais são desconhecidos, a solução continua sendo um mistério. É como se não houvesse. Talvez porque deva ser entendida como sendo apoiar algum “salvador da Pátria” que desponte graciosamente entre os candidatos à Presidência, mesmo que estejamos absolutamente ignorantes de seus projetos e do que possam eles significar.  

 

    Outro que goza de bom número de leitores é Nivaldo Cordeiro. Se não por quaisquer outros motivos, por este mesmo o que ele nos diz merece nossa atenção. Quando correto, merece aplauso; quando errado, merece crítica. Se há palavras que com nada colaboram, embora muito signifiquem, outras palavras nada significam e com muitos colaboram – embora não exatamente conosco. Um exemplo, este sem que qualquer sombra de ironia lhe perpasse: que significaria declarar “abomino qualquer intervenção do Estado na vida das pessoas e na economia, além do imprescindível para manter a ordem pública”? Essa frase se encontra em seu blogue, na seção “quem sou” [5]. Pensem um pouco. “Imprescindível” é algo absolutamente subjetivo. E “ordem pública” não é conceito algum, é apenas uma idéia amorfa que, apesar de insinuar rigidez, não guarda qualquer vínculo com qualquer estrutura definida. Nada ou quase nada, pois, essa frase significa, exceto ideologia discursiva, no sentido mais rasteiro das palavras, que nada nos acrescenta.

 

    Em artigo recente, no entanto, “Uma falsa visão de Estado” [6], várias afirmações de Nivaldo Cordeiro merecem ser destacadas. Porque são corretas. Uma delas seria, referindo-se à atualidade internacional: “Essa crise coloca a questão do que virá no lugar, provavelmente uma alternativa liberal clássica, a única conhecida fora do totalitarismo comunista. Mas é uma questão em aberto.” Por que destacá-la? Porque manifesta aversão ao “totalitarismo comunista”? Não. O “totalitarismo comunista” é apenas um dos inúmeros perigos que corremos. A afirmação merece ser destacada porque tudo o que venha após uma crise será uma questão em aberto. Assim sempre foi e assim sempre será, e, assim sendo, não apenas estará em aberto a forma como as Nações das tradicionais e das novas grandes Potências, todas elas com séculos e séculos de história nas costas,  tentarão escapar do totalitarismo de todas e quaisquer vertentes. A cada crise, uma alternativa para tratar a coisa pública estará, por certo, aberta também ao Estado brasileiro (e à Nação brasileira), e saberemos – ou não, mais uma vez – escapar do colonialismo com óbvias tendências totalitárias travestido de qualquer coisa de qualquer cor e seja como for que se apresente.

 

    No mesmo artigo, Nivaldo Cordeiro nos dirá ainda: “Temos sido escravos de alguns economistas e sociólogos defuntos, que determinam uma maneira de pensar o Brasil mais das vezes distorcida e, mesmo, errada. (…) O certo é que a forma estatal brasileira é assemelhada com a forma internacional forjada no pós-guerra e nada tem a ver com o patrimonialismo português de outrora. Isso é um reducionismo inaceitável e contrário à realidade dos fatos históricos. O Estado Brasileiro é primo irmão dos Estados Europeus e primo distante do norte-americano. A corrupção (…) é epifenômeno, que acontece em toda parte e não é propriedade patrimonialista”. Dizendo isso, muito nos diz, porque nos induz o pensamento a buscar apoio nos fatos, não em devoções gratuitas ou em bobagens ideológicas ou nem sequer ideológicas. Mas, como compreenderão essas frases os já tendentes (que são alguns muitos) a “construir uma sociedade libertária”? E quais economistas e quais sociólogos plenos de vida terão hoje razão? Que dizem eles?

 

    Se é que pretendemos ser alguma coisa no mundo e se queremos conhecer, reconhecer e fazer a boa Política, devemos, antes, tentar nos libertar dos chavões – quaisquer chavões – que penetram, faz tempo, no oco das cabeças, inclusive e principalmente das ditas acadêmicas. Deveremos também procurar perceber as razões que motivaram tantos estudiosos a escrever tantos bons livros a respeito do liberalismo em suas origens – o “liberalismo clássico”. A falta de inteligência, com certeza, não foi uma delas. Nenhum deles foi, no entanto, entre nós discutido. Nenhum deles pôde ser por nós bem aproveitado, ou porque nenhum deles foi, sequer, lido ou porque todos eles foram tão mal lidos e tão mal criticados pelos “pragmáticos da hora” a ponto da palavra “liberal” chegar a ser (não sem respaldo na prática aviltada assim também denominada) entendida e utilizada como uma ofensa grave. Eu própria a evito o quanto posso e, quando não posso, quase sempre a coloco entre aspas (porque quase sempre merecerá aspas).

 

    Se, porém, continuarmos a cair na conversa pseudopolitizada tanto “de esquerda” quanto “de direita” – uma conversa estúpida que nos diz que devemos torcer para dar certo, que nos incentiva às aversões e às devoções gratuitas, ao abandono da terra pátria, ao salve-se quem puder, ao desmantelamento das estruturas estatais que nos são necessárias à sobrevivência e também apelida o Estado de vilão da História visando apenas a nos levar à anarquia que necessariamente leva ao mau governo, a nada mais; uma conversa que adotamos sem tentar compreender o que causa o desvirtuamento da finalidade das estruturas e do próprio Estado – não saberemos compreender a que veio esse Estado, nem a que ele nos pode e deve levar, nem como deve ser estimado, nem o quanto nos é imprescindível. E, crise após crise, não encontraremos alternativa alguma.

 

    Na expectativa teimosa de que o Estado brasileiro venha de fato a ser mais bem compreendido e possa ser, pelo menos por alguns de nós, levado mais a sério antes que todos decidamos “ir embora” e ele próprio, Estado, desapareça, divulgo aos que me lêem as recentes palavras de Nivaldo Cordeiro que me pareceram corretas. Estão em um artigo bem fundamentado, e demonstram conhecimento infinitamente superior ao que, em geral, é exibido em tantos comentários tolos que vêm merecendo acrítica divulgação.

 

    Mas, para bem as ler, é preciso saber ler. E querer saber.

 

    Em seguida, é preciso querer tentar descobrir que é o que nos falta, no quadro de nossas reais possibilidades e potencialidades, para que possamos tentar arrumar, em todos os sentidos, especialmente o náutico, esse vasto Brasil desarrumado que (ainda) temos nas mãos. E querer pôr mãos à obra. Este é o desafio que uma campanha para “criar uma sociedade libertária” que vem sendo promovida a todo vapor, de Leste a Oeste, de Norte a Sul, de baixo para cima, de cima para baixo em nosso território nos vem oferecendo. E o País reclama que seja assumido.

 

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[1]operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias/29279/deputados+governistas+criam+projeto+para+anistiar+agentes+da+ditadura+no+chile.shtml

[2]todosalamoneda.cl/wp-content/uploads/2013/05/8ejes.pdf

[3]www.facebook.com/pages/Todxs-a-la-Moneda-Chilenos-en-el-Exterior/524062977640166

[4]veja.abril.com.br/blog/reinaldo/

[5] www.nivaldocordeiro.net

[6]http://nivaldocordeiro.net/blog/2013/05/21/uma-falsa-visao-do-estado/

 

Uma falsa visão do Estado

Temos sido escravos de alguns economistas e sociólogos defuntos, que determinam uma maneira de pensar o Brasil mais das vezes distorcida e, mesmo, errada. É o legado do esforço que os brasileiros fizeram para se libertar de Portugal. Nesse esforço – legítimo – foi criada uma palavra de ordem que, depois, os ativistas intelectuais de esquerda identificaram como sendo atraso a herança portuguesa. Não ao acaso Guimarães Rosa, nosso maior escritor, escreveu sua obra máxima numa linguagem que, se ainda é português, é bom próxima de um dialeto, quase ininteligível mesmo para brasileiros.

No livro Grande Sertões, Veredas Guimarães Rosa alcançou o ideal da Semana de Arte Moderna, que veio associar tudo que era contrarrevolucionário ao que vinha da herança lusitana.

Nas ciências política aconteceu fenômeno equivalente ao das letras. Segundo essa visão, de Portugal herdamos o patrimonialismo, essa chaga perpétua que dominaria o Estado brasileiro, para a infelicidade geral da nação. Refiro-me a isso porque hoje li no jornal O Estado de São Paulo o artigo de Francisco Ferraz (O paradigma estrutural do Estado hegemônico). O autor afirma que há um fio condutor desde a Colônia, em que impera o patromonialismo herdado.

Francisco Ferraz está errado. Seu artigo carece de uma definição essencial: o que é a modernidade e o que é o Estado moderno. Quem fará a definição dos termos corretamente é Eric Voegelin, em sua obra monumental. Mas essencialmente a modernidade é a ruptura que ocorre no século XV e XVI, com o Renascimento e a Reforma. Voegelin inclusive vai detectar elementos islâmicos na gênese do Estado moderno, o que não pretendo aprofundar aqui.

O Estado moderno é essencialmente a forma jurídica assumida pelo Estado no qual o elemento laico e o sagrado estão unidos, como realizou Lutero nos países onde influenciou. Tudo em contrário com o que houve na ordem medieval, onde o poder da Igreja era separado e contrabalançava o poder dos príncipes. Esse foi o primeiro passo para o gigantismo e foi nos tempos da Reforma que o Mercantilismo prosperou. O Estado virou uma gigantesca máquina política, econômica e com propósitos de fazer a engenharia social onde ia. Aqui entre nós também, com as culturas de cana, a mineração,  a exploração agropecuária dos tempos coloniais. Tudo concessão do rei.

Em resumo, todos os Estado hoje existentes são filhos dessa construção moderna, o que não significa que não haja mutações e agravamentos desde então. Se no mercantilismo tínhamos na essência os monopólios, hoje os temos novamente. Então não é isso que diferencia o Estado de hoje, no Brasil e no mundo, do Estado de antanho.

O mesmo pode ser dito do autoritarismo. Se naquela época não havia propriamente instituições democráticas, em muitos Estados hoje também não, como a China. Ou o Brasil de Vargas e do período militar. Também não é isso que muda.

O que muda, então? Francisco Ferraz deixa nas entrelinhas que seria uma versão liberal. O liberalismo de Adam Smith de fato foi a recusa do Estado Total (como chamo, Ferraz chama de “hegemônico”, um termo impreciso). Mas o liberalismo vingou bem pouco tempo em pequena parte, na Inglaterra e nos EUA. E, de fato, é ele mesmo o paradigma alternativo, mas sua vigência na história foi breve.

O que se viu no século XX foi e emergência de formas de Estado Total em toda parte. Nos EUA e na Europa do pós guerra, formas mistas de liberalismo e coletivismo, a versão Fabiana do socialismo. Vimos o Estado se agigantar inexoravelmente.  Não é privilégio brasileiro. Para nossa sorte, o legado de Vargas e do regime militar retardou entre nós a implantação do socialismo, que está alcançando seu auge com o governo do PT.

Querer que a forma adotada pelo PT seja a mesma do período colonial não é crível. O Estado socialista é de outro naipe: pretende ser o redentor das classes oprimidas e um administrador racional da coisa pública. No processo, cassa a liberdade econômica e política. Estamos vendo no momento a crise terminal do modelo socialdemocrata na Europa e no resto do mundo. Essa crise coloca a questão do que virá no lugar, provavelmente uma alternativa liberal clássica, a única conhecida fora do totalitarismo comunista. Mas é uma questão em aberto.

O certo é que a forma estatal brasileira é assemelhada com a forma internacional forjada no pós-guerra e nada tem a ver com o patrimonialismo português de outrora. Isso é um reducionismo inaceitável e contrário à realidade dos fatos históricos. O Estado Brasileiro é primo irmão dos Estados Europeus e primo distante do norte-americano. A corrupção apontada por Ferraz é epifenômeno, que acontece em toda parte e não é propriedade patrimonialista.

 

 

 

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