TREZE RETRATOS DO BRASIL E UM ESBOÇO DA “HUMANIDADE”

(fechando 2013)

 

 

 

 

       O ano de 2013 termina e, tentando recordar o que de importante ocorreu nos últimos 12 meses, nada encontramos. É como se não tivéssemos existido. Foi mais um tempo em tempos de nulidades. E nada encontramos que permita projetar um 2014 minimamente diferente, muito menos o que permita concebê-lo como promissor. Nem mesmo algo que permita antecipar o surgimento de qualquer “salvador da Pátria” tão esperado por tantos de nós. Para projetar, há apenas a continuidade da lenta sangria que há anos debilita o País. 2014 nos há de chegar, assim, sem qualquer expectativa de que algo se altere em nossa Sociedade. Um ano sem esperanças, portanto.

 

      A pretexto da proliferação de intelectuais panegiriqueiros desencadeada nos meios de comunicação por ocasião da recente morte de Mandela, a pretexto da pertinência da projeção da ação desse líder sul-africano sobre a nossa realidade, a pretexto também dos que, por ignorância, sob aplauso dos entusiastas da reforma radical de nossos mais de 500 anos de História, derrubam, sem qualquer cerimônia, Deodoro da sela de seu cavalo e oferecem-na a Joaquim Barbosa, cabe, da nossa perspectiva, a brasileira, tentar levantar aqui algumas ponderações, ainda que muito poucas, considerando-se o número possível delas.

 

      Para tanto, trago alguns “retratos do Brasil”, este gigante verde e amarelo que nos deveria alimentar e acalentar os sonhos, fossem modestos ou grandiosos, abraçando-os e protegendo-os em seu berço esplêndido.

 

      1. O primeiro deles poderá ter em destaque a “Inteligência” brasileira, que até procura fazer pose elegante, mas é facilmente pega desprevenida, em atitude displicente ou se descabelando. Na foto revelada por Thomas Shannon, o Brasil se mostra um fácil “alvo de ataques cibernéticos diários”. Os demais detalhes dessa foto, que foi publicada e comentada em http://josiasdesouza.blogosfera.uol.com.br/2013/12/20/servico-de-inteligencia-do-brasil-e-pobre-declara-assessor-da-casa-banca/, ou são Diplomacia (que nós já não sabemos o que seja) ou são fofocas palacianas, inclusive o comentário que o ex-Embaixador em Brasília pudesse ter feito a respeito da decisão do Governo de comprar da sueca Saab e não da norte-americana Boeing os 36 caças que “reequiparão” (??) a Força Aérea brasileira. Evidentemente, não interessará aos EUA, tal como a nenhum outro país industrial interessaria, em tempo algum, por qual motivo fosse, abdicar de qualquer oportunidade de “cooperar com a FAB”. Questão de mercado e de projeção de poder.

 

      O pano de fundo para o destaque é um horizonte que nos aponta Miguel Ángel Fernández y Fernández, Almirante da Marinha espanhola:

 

O desenvolvimento do ciberespaço está forçando, como se vê, mudanças estratégicas no campo da segurança nacional e, inclusive, no campo militar …  há que ter em conta na avaliação da ameaça, a ordem de combate, as capacidades cibernéticas do inimigo. Dizia Sun Tzu, tantas vezes citado como referência em assuntos de estratégia, que alcançar cem vitórias em cem batalhas não é o melhor; melhor é submeter o exército inimigo sem necessidade de combater. Talvez aqui resida a idéia deste tipo de guerra, que se dirige especialmente às infra-estruturas mais críticas de um país, como a energia elétrica, as comunicações, mando e controle, as finanças ou o transporte, cujo colapso significa a derrocada, sem disparar um único tiro, de um inimigo já incapaz de oferecer resistência” (http://database.jornaldefesa.pt/estrategias/JDRI%20086%20201213%20guerra%20cibernetica.pdf)

 

      Imaginar, pois, o Brasil, no estado em que se encontra, a enfrentar, por sua própria conta e risco, uma guerra cibernética será apenas divertido. Não é sério.   

 

      2. Fatos são fatos, intenções são intenções, ilusões são ilusões. Em um segundo retrato, o que vemos é a Força Aérea Brasileira engessada por falta de aviões. Receberá um, dizem os otimistas, em 2018 – o primeiro dos 36 caças que da Suécia foram comprados como “resposta”, dizem também, às curiosas espiadelas norte-americanas às quais o Governo brasileiro se expôs. Os demais chegarão nos três anos seguintes. Gripens foram também comprados pela Tailândia – seis deles decolaram em fevereiro de 2011, fazendo escalas na Hungria, Grécia, Egito e na Índia antes que pousassem em seu destino (http://www.planobrazil.com/tailandia-recebe-os-seis-primeiros-saab-gripen-cd/); e foram os escolhidos pela África do Sul – segundo o que se lê em http://www.areamilitar.net/noticias/noticias.aspx?nrnot=558, “é o mais sofisticado avião de combate ao serviço a sul do Sahara”. Estamos bem acompanhados em nossas escolhas… Além de podermos saber, por uma reportagem de O Globo (http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/12/governo-anuncia-compra-de-36-cacas-suecos-do-modelo-gripen.html), que o Gripen NG sueco, modelo novo, goza de tecnologia inferior à dos concorrentes no processo de seleção aberto pelo Governo brasileiro, tem menor capacidade de carga, portanto, de carga de armas, voa com recursos produzidos não pela Suécia, mas inclusive por norte-americanos, não foi provado em combate, é um protótipo de uma única turbina, mas seria perfeito para “atender às necessidades operacionais da FAB pelos próximos 30 anos”, saberemos também, sem auxílio de qualquer repórter investigativo, que, se hoje não há aviões, amanhã não haverá pilotos. E não havendo aviões nem pilotos, as bases da FAB serão supérfluas – o que nossos previdentes governantes já compreenderam porque são inteligentes:

 

Enquanto no ar os pilotos de caça não conseguem cumprir, em um ano, as 150 horas de voo obrigatórias para manter as condições de combate, na terra a Aeronáutica conduz discretamente um processo de desativação de bases aéreas para gastar menos. E a expectativa na tropa, com a encomenda de R$ 4,5 bilhões a Suécia, é que o comando aperte ainda mais os cintos. A pretexto de redimensionar a frota, a Aeronáutica já esvaziou os hangares de duas bases [Natal e Fortaleza]a política de desativação deve atingir agora a base de Florianópolis (SC), sede do esquadrão Phoenix, formado por Bandeirantes Patrulha (2º do 7º), e a histórica Base Aérea do Campo dos Afonsos, na Zona Oeste do Rio— ‘E assim, base após base, município após município, a FAB vai reduzindo sua presença nacional e consequentemente a função econômico-social que exerce dentro das comunidades às quais se integra’ — disse um piloto de testes, que prefere não se identificar.”  (http://oglobo.globo.com/pais/enquanto-gripen-nao-chega-fab-fecha-bases-para-economizar-11134543#ixzz2oCVznuNp).

 

      E, nesse enxugamento pragmático, o Brasil promete permanecer por mais 5 anos, quando, depois de um processo de duas décadas, pois que iniciado em 1992, poderá, por fim, dizem ainda, enfrentar “ameaças em qualquer ponto do território nacional com carga plena de armas”.

 

      3. O terceiro retrato nessa mesma página de nosso álbum é o do Exército Brasileiro, primordial responsável pela consolidação da unidade nacional, tentando sobreviver miseravelmente na Amazônia e nas fronteiras para que o Brasil sobreviva com seu território e sua identidade íntegros, enfrentando e superando grupos inimigos, místicas raciais e superstições sociais. Ele nos mostra (http://g1.globo.com/brasil/noticia/2013/12/soldados-que-defendem-fronteiras-da-amazonia-vivem-na-idade-da-pedra.html) que o abastecimento de alimentos e medicamentos dos pelotões de fronteira se dá a cada 30 ou 45 dias, dependendo da disponibilidade de um avião. Água para banho, para lavar roupa e louça será a do rio e para beber é a da chuva. A carne é guardada congelada e, também para que isso seja possível, geradores funcionam 16 horas por dia. Em dois pelotões esses geradores pararam de funcionar ao mesmo tempo, em 16 de Novembro último, devido a que o combustível havia sido adulterado. A tropa ficou mais de 24 horas sem energia. A FAB, apesar das restrições de ordem não exclusivamente orçamentária, acudiu em caráter de urgência. De regra, uma única viagem por mês é feita a cada unidade. Quem precisar de medicamento ou ser transportado, deve esperar. Em Boa Vista, o avião que apóia 6 pelotões de Roraima permaneceu em terra para manutenção por mais de uma semana. Dois pelotões estão com pistas de pouso curtas demais, em péssimo estado, sem condições para pouso de grandes aeronaves. Em virtude dessas condições precárias, onde a pista não oferece condições de sequer garantir alimentação para todos, os familiares dos militares foram retirados. E o efetivo foi reduzido – onde havia 60 homens apenas 17 são mantidos. A FAB só opera com aviões que comportam até 600 quilos, nenhum avião capaz de levar 6 ou 7 toneladas. Afora isso, são vinte minutos (é até pouco…) para conseguir conexão na internet, não há sinal de celular, nem telefonia fixa além de um orelhão. O Brasil, em 2012, possuía munição para apenas uma hora de guerra. Não sabemos quanta munição utilizável hoje ele terá. Mas já sabemos que nosso País não se interessa por guerras – o Brasil quer a paz. Então, está tudo certo.

 

      4. Dito isso, viremos a página desse álbum. E será interessante nos lembrar do que todos nós fazemos questão de esquecer – o que Gilberto Freyre nos disse em 1963: “A mestiçagem unifica os homens separados pelos mitos raciais. A mestiçagem reúne sociedades divididas pelas místicas raciais e grupos inimigos. A mestiçagem reorganiza nações comprometidas em sua unidade e em seus destinos democráticos pelas superstições sociais”. Lembrando disso – do que é ou deveria ser, que um dia já foi e quase não mais é – se formos um pouco mais inteligentes que nossos governantes, começaremos a perceber que a única chance real que o Brasil terá de manter-se minimamente vivo é encontrar e, encontrando, proteger a unidade e a força de seu povo, apostando nelas. Para isso, é preciso que esse povo tenha uma identidade e a queira defender. Ou seja, a única chance que temos de nos mantermos minimamente vivos é encontrar e proteger a nossa identidade.

 

      E o retrato seguinte a apreciar poderá ser o da Escola brasileira, tentando miseravelmente deseducar uma reduzida parte da população ainda relativamente educada na nacionalidade para que o Brasil se fragmente por completo e, sem identidade, não sobreviva aos mitos raciais, aos grupos inimigos e às superstições sociais

 

***

 

      O Brasil não é a África. A começar porque a África é um continente e o Brasil é um Estado. E, sendo um Estado, nem faz parte da Federação que se denomina Estados Unidos da América, nem é a África do Sul, nem é outra coisa qualquer senão Brasil. O Brasil tem uma História só dele mesmo, feita por brasileiros, uma História de origem diferente da História dos tais nossos “irmãos”, os ditos “latinos” que se encontram no continente americano, diferente da História mais recente de qualquer outro país da região ou fora dela, que terá produzido experiências diferentes das experiências que qualquer outra História pudesse permitir – a nossa História de fato é aquela que permitiu que chegássemos onde estamos, a que muitos procuram deturpar para transformá-la em igual à que seria a História “de todos”.  Nenhuma outra. Seria de se supor que a população brasileira buscasse afirmar sua identidade em seu próprio benefício, buscando-a em sua origem, e sob ela se organizasse, procurando cada vez mais superar as questões de ordem administrativa e de ordem socioeconômica na miscigenação incontestável que desde sempre a caracterizou. Não é o que acontece. O País cada vez mais se desorganiza produzindo efeitos em cascata em ambas as esferas e em muitas outras mais.

 

      Teremos, assim, nas páginas seguintes, outros retratos mais, interessantes de ver e de rever, alguns apenas extravagantes, outros muito e muito preocupantes, mas todos eles do Brasil.

 

      5. Em 1928, Paulo Prado, nascido primogênito do Conselheiro Antônio Prado, no seio de uma das mais influentes famílias paulistas, cafeicultor, investidor (bancos, industrias, imobiliárias), formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, incentivador da Semana de Arte Moderna, escritor e poeta, jogou-nos em cima um “Ensaio sobre a tristeza brasileira”. O que era chamado de “tristeza” seria uma característica de um povo que ele, mas não apenas ele, Paulo Prado, observava com o desdém pelas evidências apenas apropriado aos pedantes e aos ignorantes. Essa “tristeza” mereceria ser explicada de maneira “original”, embora essa explicação fosse apenas uma opinião, mas estivesse de acordo com as teorias históricas ditas “científicas” em voga no momento – as que foram sacadas do bolso da algibeira de um Gobineau e de um Chamberlain, por exemplo. Paulo Prado nos dirá a nosso respeito, entre outras coisas mais, que

 

A melancolia dos abusos venéreos e a melancolia dos que vivem na idéia fixa do enriquecimento — no absorto sem finalidade dessas paixões insaciáveis — são vincos fundos na nossa psyché racial, paixões que não conhecem exceções no limitado viver instintivo do homem, mas aqui se desenvolveram de uma origem patogênica provocada sem dúvida pela ausência de sentimentos afetivos de ordem superior. Foi na exaltação desses instintos que se formou a atmosfera especial em que nasceu, viveu e proliferou o habitante da colônia. … No Brasil a tristeza sucedeu à intensa vida sexual do colono, desviada para as perversões eróticas, e de um fundo acentuadamente atávico. Por sua vez a cobiça é uma entidade mórbida, uma doença do espírito, com seus sintomas, suas causas e evolução. Pode absorver toda a energia psíquica, sem remédios para o seu desenvolvimento, sem cura para os seus males. Entre nós, por séculos, foi paixão insatisfeita, convertida em idéia fixa pela própria decepção que a seguia … sem que nunca lhe desse a saciedade da riqueza ou a simples tranqüilidade da meta atingida … pela inutilidade do esforço e pelo ressaibo da desilusão. Luxúria, cobiça: melancolia. Nos povos, como nos indivíduos, é a seqüência de um quadro de psicopatia: abatimento físico e moral, fadiga, insensibilidade, abulia, tristeza. Por sua vez a tristeza, pelo retardamento das funções vitais, traz o enfraquecimento e altera a oxidação das células, produzindo nova agravação do mal com o seu cortejo de agitações, lamúrias e convulsões violentas”.

 

      Assim, Paulo Prado retratou o Brasil, retrato esse que foi exposto em álbuns de família, foi emoldurado e pregado nas paredes das casas, exibiu-se em galerias públicas e em palanques políticos, agitando orgulhos e preconceitos particulares estúpidos, que estão na fonte do racismo, e pretensões separatistas.

 

      Para controlá-los, em 03 de Julho de 1951, surge uma lei contra a discriminação racial (Lei 1.390/1951), conhecida como Lei Afonso Arinos, em plena vigência e no vigor de seus resultados até os dias de hoje, apenas alterada (Lei 7.437, de 20 de Dezembro de 1985) para incluírem-se em alguns de seus artigos, após “preconceito de raça ou de cor” as palavras “de sexo ou de estado civil”. Em nosso País, que conta (ou na época contava, e contou até que todo furta-cor passou a ser obrigado a escolher e declarar a cor de suas vísceras) com mais de 50% da população miscigenada, tal Lei apenas brindava e reafirmava uma tendência espontânea da maioria nacional e corrigia desvios. Corrigia a marginalidade, nada mais.

 

      No entanto, outros muitos entre os discípulos dos grandes teóricos acima citados, repetiriam seus mestres e se encarregariam de aperfeiçoar o ofício de disfarçar o óbvio social com argumentos mirabolantes, se não insanos, que calariam fundo em alguns grupos de nós. Não só entre considerados brancos. O que deu origem a diferentes expressões multicoloridas da mesma coisa. Assim, o “orgulho de ser” qualquer-coisa-descendente que tempere com boas qualidades um pífio ser brasileiro e o faça muito especial entre os demais mestiços todos é ainda a ilusão que mais nos castiga o couro e o juízo – até os dias de hoje. A começar do “pífio”. E, assim, fomos brindados com muitos outros retratos do Brasil nesses últimos 85 anos em que já podiam ser percebidos os atuais recursos de um photoshop de última versão, antecipados e fartamente utilizados.

 

      6. Em uma Nação composta de todos e qualquer um que a quisesse compor, desde o primeiro momento, uma Nação inteiramente miscigenada entre todas as etnias concebíveis, por isso mesmo tão extraordinária, não podemos admitir que qualquer minoria presuma gozar de qualquer superioridade sobre os demais provinda de uma suposta pureza racial; nem poderíamos atribuir responsabilidades e culpas exclusivamente a uma única dada etnia; muito menos poderíamos determinar uma tendência, uma índole, um caráter, qualquer característica específica não eminentemente política que unificasse a maioria mestiça; menos ainda alguma vez poderíamos ter atribuído à maioria qualquer inferioridade intelectual genética que nos induzisse à servidão.

 

      Poderemos afirmar, portanto, com absoluta segurança, que, se isso acontece, apenas acontece graças à influência e à ação de organizações globais, supra-estatais, tanto de esquerda quanto de direita (charmosamente denominadas “think tanks” ou ONGs), religiosas ou laicas, que visam, especificamente, à desarticulação do Estado Nacional. E acontece não só no Brasil. E não só nos dias de hoje. Essas organizações se infiltram e se confundem com instituições nacionais fantasiadas de protetoras dos direitos das ditas vítimas do preconceito racial, e desfrutam da demagogia eleitoreira dos que apontam uma “minoria branca” como responsável por todos os nossos males, inclusive pela violência urbana – tal como um Claudio Lembo (seria ele bege, azul ou cor de rosa?), na maior desfaçatez, quando Governador de São Paulo, foi capaz de retratar… – http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u121683.shtml).

 

      7. Muito bem, há opiniões de salão que são tomadas como teorias científicas. Especialmente quando a opinião é a de uma “autoridade”. As teorias não são tão importantes quanto os fatos, mas serão bastante importantes, principalmente porque nem sempre se reduzem a explicar os fatos – o que é a função de qualquer teoria. Agindo como ideologia, as teorias, por vezes, criam os fatos. Ou transformam fatos esparsos, sem qualquer importância generalizada, em fatos determinantes.

 

      Kabengele Munanga tem em seu currículo uma graduação em Antropologia Cultural pela Université Officielle Du Congo à Lubumbashi e um Doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, da qual é Professor Titular. Ele também nos mandará olhar o passarinho. O retrato por ele revelado tem, como pano de fundo, algumas considerações pertinentes (https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=59):

 

Os conceitos de negro, branco e mestiço não significam a mesma coisa nos Estados Unidos, no Brasil, na África do Sul, na Inglaterra, etc. Por isso que o conteúdo dessas palavras é etno-semântico, político-ideológico e não biológico. Se na cabeça de um geneticista contemporâneo ou de um biólogo molecular a raça não existe, no imaginário e na representação coletivos de diversas populações contemporâneas existem ainda raças fictícias e outras construídas a partir das diferenças fenotípicas como a cor da pele e outros critérios morfológicos. É a partir dessas raças fictícias ou ‘raças sociais’ que se reproduzem e se mantêm os racismos populares. … o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são conseqüências diretas de suas características físicas ou biológicas. … difícil é aniquilar as raças fictícias que rondam em nossas representações e imaginários coletivos.”

 

      Até aqui, tudo bem. Mas o acadêmico ainda nos dirá, de boca cheia, ao solenemente perorar:

 

A questão é saber se todos têm consciência do conteúdo político dessas expressões e evitam cair no biologismo, pensando que os negros produzem cultura e identidade negras como as laranjeiras produzem laranjas e as mangueiras as mangas. Esta identidade política é uma identidade unificadora em busca de propostas transformadoras da realidade do negro no Brasil. Ela se opõe a uma outra identidade unificadora proposta pela ideologia dominante, ou seja, a identidade mestiça, que além de buscar a unidade nacional visa também a legitimação da chamada democracia racial brasileira e a conservação do status quo.”

 

      Esse flash sobre inúmeras “identidades” raciais, que muito agradará à “Humanidade” – e a estimulará a mobilizar-se para que nossa “identidade mestiça” não mais busque “a unidade nacional nem vise à “legitimação da chamada democracia racial brasileira” – será pano de fundo para outras fotos mais. E, nelas, negros, brancos e outros mais até poderão não pretender uma relação de superioridade/inferioridade, mas serão diferentes como água e azeite, que não se misturam. Se não se misturam, será impossível qualquer referência à nossa Nação, pois ela se caracteriza pela mestiçagem. Essa “evidência” também justificará o isolamento entre os considerados brancos e os considerados índios. E justificará a manutenção da “cultura ancestral” desses últimos. Essa divisão “necessária” criará evidente desconforto ao tentarmos consolidar qualquer manifestação de nossa cultura eminentemente mestiça e nascida da mestiçagem.

 

      8. Vejamos, por exemplo, o retrato da música popular brasileira. Ela nem é preta nem é branca – é música e é brasileira, ponto. Não é jazz, não é reagle, não é funk e não se resume ao samba. Nem todo samba é alegre, nem todo samba é triste. O samba carioca é diferente do samba paulista, que é diferente do samba baiano. E quem faz sambas não são brancos ou são pretos – são compositores, músicos e letristas. Vinícius de Moraes (poeta, parceiro de Carlos Lyra, Pixinguinha, Baden Powell, Tom Jobim, João Gilberto, Toquinho…) nos teria afirmado que “se hoje ele [o samba] é branco na poesia, ele é negro demais no coração”. O que separa o verbo, o intelecto, que seria branco, do ritmo e da melodia, que seriam negros. O poeta de Ipanema ainda mais determinaria: “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza, se não, não se faz um samba, não”. Apesar de que seja “melhor ser alegre que ser triste” – o que não há como contestar. Então, o bom samba seria meio alegre e meio triste. O samba que assim não fosse não seria considerado bom. Não poderia ser bom porque não teria beleza. Esses versos todos estão em um único samba. Cada um deles soa muito bonito, mas, no conjunto, dizem não mais que uma tremenda cretinice.

 

      A questão preta x a questão branca foi levantada em uma entrevista – publicada no Pasquim em Agosto de 1970 e citada em http://euqueroumsamba.blogspot.com.br/2012/02/as-patacadas-do-branco-mais-negro-do.html – concedida por Paulinho da Viola (compositor, violonista e poeta, que cresceu na zona Sul do Rio em contato com os integrantes do conjunto Época de Ouro, do qual seu pai, César Faria, era parte, e com Jacob do Bandolim, Pixinguinha e outros gigantes da nossa música popular). Em certo momento dela, Vinícius intervém e argumenta: “Eu acho que quanto mais o negro se aproximar de uma cultura, menos racista ele deve ser. Compreende-se que como “cultura” Vinícius se referisse a “civilização”, não a qualquer cultura tribal. Ele prossegue: “É a cultura que aproxima as pessoas e resolve os problemas. Até agora não tem resolvido nada, mas nossa esperança é que resolva.” E declara, como bom poeta que era: “o grande problema do racismo se resolve na cama”. Compreende-se que como “problemas” Vinícius quisesse dizer “conflitos” e ao apontar “resolver” Vinícius quisesse apontar “miscigenar”. Ou, sendo ele um macho, quisesse apenas apontar “dominar”…?

 

      Paulinho da Viola rebaterá: “Eu acho que aí há um negócio diferente. No momento em que você tenta fazer certas afirmações em termos de uma cultura negra, de certos valores negros, e tenta afirmar isso como valores absolutos, como uma coisa que tem que ser porque não foi, eu acho que é racismo. … Essa afirmação desses valores que você entende como uma posição racista, ela é racista até certo ponto. Dependendo das proposições, das coisas que estão acontecendo, ela até pode ser uma posição válida e importante, ela pode não ser uma posição racista.”

 

      A questão não foi resolvida nem por um nem por outro, nem por alguém mais, mesmo porque não seria uma questão a ser levantada por qualquer um de nós com um mínimo de juízo; e nós, que, sem discutir se o samba seria branco ou seria negro, que costumávamos produzir, entre negros, brancos e principalmente mestiços, muitos sambas lindos, , e costumávamos aprender, cantando, a falar, a pensar e a sentir o País em bom Português, com versos perfeitos, por vezes refinados, sofisticados, nunca pedantes, hoje nada aprendemos nem produzimos mais. Ou não divulgamos, o que dá na mesma. E não mais sabemos cantar a nossa música, exceto em círculos muito restritos. Porque nossos sambas não mais nos fazem falta. Ninguém mais os assovia sequer nas ruas. É possível que os tenhamos superado com nosso ingresso no álbum de fotos da “pós-modernidade”. Porque a “Humanidade” tem seus ritmos próprios, mais adequados à “globalização”, e, no território nacional, o importante será desqualificar a cultura e enterrá-la de vez para que se rompa a unidade em prol da dispersão. Por outro lado, consideremos que, se para fazer um belo samba é preciso um bocado de tristeza, para nos mantermos fazendo sambas deveríamos nos manter um bocado tristes. Ou meio tristes. O que nem é muito sadio nem é muito agradável…

 

      9. Mas, por falar em proposições e em valores, Edison Portilho, ex-Deputado Estadual (PT-RS), atual vereador de Sapucaia do Sul, animado com a garantia constitucional dos direitos e deveres individuais e coletivos … estampada “no art. 5º, especificamente no Inciso VI, ‘é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias’, apresentou, em Agosto de 2003, o Projeto de Lei n° 282 que acrescenta parágrafo único ao art. 2º da lei nº 11.915, de maio de 2003, que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, com a seguinte redação: “Art. 2º…. Parágrafo único – Não se enquadra nessa vedação o livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana.”

 

      Portilho agitou-se agitando esse projeto em retrato que lhe seria caro, declarando de sua tribuna: “Não sou Batuqueiro, mas sou Negro. E, como Negro, tenho o dever de lutar por esta causa.” (http://blogs.estadao.com.br/joao-bosco/tag/edson-portilho/). Doque se conclui que tentar impedir a aprovação desse Projeto seria racismo. Racismo também seria supor, como supôs Vinícius de Moraes que “quanto mais o negro se aproximar de uma cultura, menos racista ele deve ser”. Como Portilho, de Deputado, desceu à condição e ao salário de Vereador, é lícito crer que nem sequer a confiança dos negros, entre os quais se incluiu mas não são tão estúpidos, conseguiu manter… 

 

      10. Muito pouca gente, especialmente no Sul e no Sudeste, conhecerá Leão Alves. É um médico, membro do “Nação Mestiça”, movimento que surgiu no Amazonas e defende “a valorização do processo espontâneo de mestiçagem entre os indígenas, brancos portugueses colonizadores, pretos africanos trazidos ao Brasil no período escravista, amarelos e demais imigrantes”. Leão Alves permitirá que tenhamos de nós um retrato mais aproximado da nossa realidade.  Diz ele :

 

O antropólogo Kabenguele Munanga não responde na primeira pessoa, mas informa que ‘construir a identidade “mestiça” ou “mulata”’ é considerada por ‘mestiços conscientes e politicamente mobilizados como uma aberração política e ideológica, pois supõe uma atitude de indiferença e de neutralidade perante o processo de construção de uma sociedade democrática, na qual o exercício da plena cidadania, a busca da igualdade e o respeito das diferenças constituem tributos fundamentais.’ Quem seriam estes ‘mestiços conscientes’ que o antropólogo não nomeia? Quem seriam estes ‘mestiços’ tão conscientes de sua identidade que eles mesmos defendem que esta não deva ser ‘construída’? Como é possível falar em ‘respeito das diferenças’ sem respeitar uma identidade mestiça independente? O ‘politicamente mobilizados’ parece indicar a resposta.”

 

      Para confirmar sua autoridade no assunto, Leão Alves nos dirá ainda:

 

“… sou mulato e nunca percebi ter sido chamado pejorativamente por este termo, exceto por alguns ativistas de movimentos negros que se iraram quando assumi minha identidade mestiça numa audiência do Senado em Brasília acerca do PL das Cotas Raciais, e em alguns outros eventos similares. Como dissemos, a tentativa de dar ao termo mulato uma conotação depreciativa visa atingir o objetivo político de constranger o mulato e fazê-lo identificar-se como negro.” (http://www.nacaomestica.org/la_kabengele_munanga_e_a_aberracao_mestica.htm):

 

      A essa altura, Paulo Prado talvez desse um pulo na sepultura e na discussão interferisse nos dizendo que brancos produzem cultura e identidade como laranjeiras produzem laranjas e mangueiras produzem mangas… com o que Vinícius de Moraes, pulando na sua, concordaria, ou não, e também Kabenguele Munanga poderia concordar, ou não, concordando, ou não, também com Edison Portilho, uma vez que a “consciência” de que os negros, assim como os índios, devem ter seus direitos particulares acudidos e defendidos deverá pairar acima de qualquer outra consciência.

 

      11. E, por isso, desde já, mais um retrato do Brasil nos poderá ser exposto nessa galeria: o de cinco dos grandes caciques de nossas tribos selvagens, todos eles candidatos a anjos e a santos, em vôo conjunto à África do Sul a convite da “presidenta” búlgara na poesia e negra no coração, para homenagear, em uníssono e de mãos dadas, Mandela, líder anti-apartheid que não encontrou a morte na posição de Chefe de Estado em exercício. É um retrato de um Brasil que “mereceu” financiar uma comitiva para que rendesse honras a um grande líder da “Humanidade” em cerimônia politicamente ecumênica.

 

      Eis que chegou a vez de Mandela subir ao altar da nossa Pátria, posando entre os “guerreiros do povo brasileiro” com amparo de todos os inconseqüentes. Então, que fazer? É esperar para ver, agora, o que, em nome de Mandela e de sua luta, poderá ser desejado, ser dito e ser feito.

 

      Conforme disse não eu, mas Luís Felipe Pondé em programa de televisão, fosse Mandela católico e poderíamos chamá-lo de santo desde já. A observação cairá como uma luva sobre o ilustre recém-morto e sobre todos os demais que, entre os que são e estão bem vivos, já estão mortos, mas sobrevivem, por insuspeita excelsa glória, a todos nós. O que acontece, acontece em todos os tempos do tempo, aconteceu com muitos mais antigos, aconteceu com Lineu, Gobineau e Chamberlain etc. etc., aconteceu também há pouco menos de um século com Gandhi, e acontece agora com Mandela e ainda acontecerá com outros mais. O que acontece é que certos indivíduos dão um “salto qualitativo” e serão adotados como ícones por todos aqueles que não têm amor à terra e não se identificam em sua nacionalidade. Serão “superiores”.

 

      Aqui não se trata de questionar o valor de Mandela para seu próprio povo – trata-se de ponderar se existem de fato razões para que se atribua ao seu discurso qualquer vantagem adicional para o nosso povo, o brasileiro. Mas, uma vez que os supostos interesses da “Humanidade” devem se sobrepor aos de nosso Estado, uma vez que Afonso Arinos pôde ser esquecido, a nossa realidade já pouco nos importa. Se verificamos que nela nos será impossível encontrar a pertinência do discurso de Mandela, poderemos tentar compreender, se formos curiosos, por que esse discurso se torna tão valioso. E a única explicação para o valor que lhe é atribuído se encontrará em que ele justifica plenamente que, de decomposição em decomposição, de salão literário a salão literário, de ensaio científico a ensaio científico, de homenagem a homenagem, possamos nós ir adiante de forma “politicamente correta”, condenando o “branqueamento” da população, que “devemos” condenar horrorizados, e compondo, pedaço a pedaço, em um mosaico sem cimento forte que o sustente, o retrato fragmentado deste (ainda) nosso Brasil colorido por inteiro. Todos esses pedaços, lado a lado, tingidos de cada uma das cores que possamos encontrar em seu isolamento, desarraigadas, disponíveis à manipulação de qualquer um para objetivos de qualquer espécie, formarão o retrato do Brasil segmentado, que revela o porquê da situação miserável que a Escola brasileira enfrenta – Escola que só diz a que está enquanto projeção de Brasil houver, ou seja, enquanto houver uma identidade nacional a se projetar -, e da situação miserável que as Forças Armadas Brasileiras suportam – Forças Armadas que só dizem a que estão enquanto Brasil se mantiver, ou seja, enquanto houver uma integridade nacional a manter. Escola e FFAA são dois retratos de conjunto nesse álbum do Brasil inteiro, o de todos nós, a nos acotovelar, cada um com cada um, todos com todos os demais, tentando sobreviver no território dito brasileiro.

 

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      Ao virar mais esta página de nosso álbum de retratos, encontraremos uma folha solta, pautada, de rascunho, que ninguém sabe quem ali a terá colocado, na qual foi feito um rabisco com lápis verde e azul como a Amazônia que lembra a forma humana; sobre os membros e a cabeça, desproporcionais, foi grosseiramente passada uma borracha que os deixou menos nítidos. No alto da folha, uma palavra foi escrita: “Humanidade”.

 

      Aqui e ali vemos mudas da “Humanidade” sendo plantadas, adubadas e regadas com conveniente mise en scène e muitas lágrimas. Em nenhum lugar as vemos vicejar. Porque a “Humanidade” nada tem a ver com a Biologia – é uma definição estritamente política, ideológica. O fato de o Homem ser um conceito universal não faz da tal da “Humanidade” um fenômeno universal. E o conceito de “Humanidade” será o avesso perfeito do conceito de “povo”, por mais que os que o utilizam tentem confundi-lo, esvaziando de valores esse último e usurpando-lhes o significado.

 

      Desde que o mundo é mundo, pelo que dela dizem, seria possível observar que a tal da “Humanidade”, um ente misterioso, amorfo, inconsistente e guloso, que por ninguém jamais foi visto, teria o vício de acenar com promessas de distribuição de milagres modelo prêt-à-porter e o de produzir e cultivar ídolos transgênicos, semeando-os por todo o território terrestre. Ídolos do Bem e ídolos do Mal, do bom e do mau-mocismo, que se esgotam em si mesmos, que de fato são estéreis. Essas falsas sementes são frutos verbais, os mitos de si mesma, que alimentam suas tropas para que sejam devoradas no momento oportuno pelos que se mantêm no seu comando (em sendo política, não biológica, a “Humanidade” terá um comando, isso é óbvio).

 

      A “Humanidade” não produz qualquer milagre. Definitivamente não. Nenhum foi por ela feito até os dias de hoje. E os Homens querem milagres. Querem maná caído do céu, sombra e água fresca com mínimo esforço. Então, a “Humanidade” faz discursos nas quermesses promovidas pela mesma “Humanidade”, quermesses onde imagens de anjos e santos do Bem, muito iluminadas, e de dragões da maldade, empilhados em um canto enfumaçado, serão vendidas em barraquinhas ao lado de colares de contas e defumadores. É uma indústria próspera e bom comércio esses que se nos põem à disposição. As imagens maiores poderão ser exibidas nas estantes, ao lado da TV ou junto aos livros; as menores estarão em medalhinhas e servirão de amuletos que prometem proteger os indivíduos das adversidades. Imagens de dragões devem também ser compradas, e devem ser escondidas no fundo do armário, de ponta-cabeça, ou enterradas no fundo do quintal. Todas elas serão instrumentos de uniformização de mentalidades e comportamentos, permitindo que, em cada oração ou cada exorcismo, adaptemos o nosso faz-de-conta cotidiano às “verdades universais”; permitindo que deuses de pés de barro continuem sendo adorados e recebam ladainhas, oferendas e sacrifícios em praça pública; permitindo que o mundo caminhe cada vez mais devagar. Às vezes, não para frente, mas para trás, de marcha a ré.

 

      À “Humanidade” pouco importa se a História desse mundo obedece ou não àquela versão que vem sendo contada como se fosse a verdadeira por seus escribas oficiais, os arautos do ontem, por vezes confundidos com historiadores, por vezes confundidos com profetas. Desconhecendo sua própria História, certos indivíduos crêem tanto na nova história que lhes possa ser oferecida “gratuitamente”, que se tornam incapazes de se reconhecer em suas próprias circunstâncias, que específicas são e não o deixarão de ser, jamais. E, para gozar de boa vida, apelam aos ícones sagrados da “Humanidade”, que são reconhecidos por “todos” como exemplos, modelos de caráter e de virtudes que convêm a discursos que deleitem os incautos e as “bases” políticas mais ou menos amplas ou restritas em todo e qualquer lugar sob todas e quaisquer circunstâncias. Esses ídolos, que eram gente comum como todos nós, fossem quais fossem exatamente suas intenções e seus objetivos, que muito poucos chegaram ou chegam a conhecer, sejam quais sejam sua trajetória e seus desvios, transcendem, de repente, seus limites físicos e são elevados em espírito ao pódio dos “Heróis da Humanidade”. Alguns de nós, simples mortais (alguns raros) ainda conseguem ser relativamente críticos em relação aos mitos alheios. Mas que ninguém ameace apontar o dedo a seus próprios ídolos…

 

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      12. Na página seguinte, revelar-se-á mais um retrato do Brasil: o dos períodos de eleições e campanhas eleitorais, como é o atual, que se repetem de dois em dois anos, em que o povo – que também é um conceito político, mas este, sim, concreto, palpável, demonstrável – não se reconhece a si próprio em suas condições reais e, por isso, não terá representantes a indicar. Os candidatos a eleição serão candidatos a anjos e a santos – para habilitar-se a tal, deverão exibir na coleira algum dragão-demônio referendado pela “Humanidade” que encontraram vadiando pelas ruas e deverá ser domado. Se nenhum for encontrado nas proximidades, adotam qualquer um que lhes possa ser emprestado por um vizinho mais distante. Afirmando combatê-lo, os candidatos serão seguidos por multidões em busca de milagres, sempre restritos às condições de suas vidas particulares.  

 

      E que ninguém pense em corrigir-se. Por que alguém encontraria alguma necessidade de se corrigir, se os exemplos “universais” não só podem como “devem” ser observados, seguidos ou rechaçados conforme o “politicamente correto” do momento, seja ou não seja assim chamada a moda e isso tanto faz como tanto fez, amém? Afinal, a paz, seja lá o que isso for, é o desejo de todos, e só será conseguida por meio de um comportamento “bem orientado”, que não ofenda os deuses, os santos e os anjos – e, para que ela seja alcançada, sacerdotes de diferentes doutrinas e filosofias estarão sempre prontos a orientar o nosso comportamento. E se não são deuses, se não são santos, se não são anjos, serão sacerdotes por alguma razão…

 

      Interessante notar, ainda, que somente os vencedores se transformam em ídolos, tanto do Bem quanto do Mal – e a vitória não lhes chega por acaso. Se todos os Homens nascem iguais, Homens comuns só conseguem ser elevados a anjos, santos ou demônios quando catapultados por aqueles que têm efetivo poder sobre os demais. E serão incorporados aos mitos da “Humanidade” com grande estardalhaço, firmando-se no imaginário popular. Os demais, os que perdem suas batalhas, ainda que sejam árduas e sejam justas, serão esquecidos, e perderão suas vidas, literal ou metaforicamente, na poeira dos tempos.

 

      13. E o último retrato que me ocorre aqui mostrar é o da Universidade brasileira, da qual decorrem os mais recentes retratos nacionais de conjunto. Ele terá como destaque e como legenda a posição inferior de que goza essa Universidade entre as demais, ou seja, o seu redondo e incontestável fracasso enquanto Universidade. Para o que um “ensaio” de araque já providenciou uma explicação (“científica”?), que não será muito discutida, muito menos na própria Universidade: não é porque ela, a nossa Universidade, não incentive mais do que a produção de glosas de outras glosas e/ou apenas reproduza as “verdades científicas” oriundas de outras plagas; não é porque ela não consiga ter autonomia intelectual suficiente para querer tentar nos ver, a nós, tal como somos, e não consiga descrever a nossa realidade sem que esta esteja filtrada e empacotada pela descrição de realidades outras, alheias a nós, que poderão ser tão verdadeiras quanto uma aldeia Potemkin; não é porque, a partir da nossa realidade, ela, a nossa Universidade, não consiga projetar verdades nossas que possam vir a ser reconhecidas como mais universais que as ditas “verdades universais”; não é porque essa Universidade agite a bandeira da Anarquia e viva de greve em greve e promova a invasão, a ocupação e a destruição do próprio público e não é que quem nela ingressa nem sequer saiba ler, fazer contas, escrever e falar Português que ela não consegue gozar de respeito e de bom conceito – é porque… ela não dá aulas em inglês, ora! (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/79945-nossas-universidades-precisam-falar-ingles.shtml)

 

      Não é fantástico? Simples assim. Como não pensamos nisso antes? Deveremos esperar que a crise chegue a tal ponto nas nações anglo-saxãs que comece a provocar um grande fluxo migratório? Se isso ocorrer, nossa elite intelectual (e política…) poderá em breve contratar governantas suficientes para que sua prole possa familiarizar-se desde cedo com versos de Shakespeare sem precisar que sejam bem traduzidos… o que combinaria com nossas vitrines de Natal cobertas de neve e o Papai Noel coberto de lã em pleno Dezembro… Ou poderemos nos satisfazer desde já com o inglês da Jamaica?

 

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      Nesses retratos todos, procuremos com alguma atenção que nos reconheceremos todos. E poderemos também reconhecer a nossa responsabilidade – e responsabilidade não tem cor – porque só nossa ela é, e de mais ninguém. Somos nós todos nessas fotos. E somos nós mesmos nos fotografando. E nos exibindo ao mundo. De nada adianta o fotógrafo tentar se esconder de nós e dele mesmo – ele sempre aparece. 

 

      E continuaremos a posar para nossos retratos, os retratos do Brasil das benevolentes parcerias estratégicas, das misteriosas parcerias público-privadas, das micro, médio empresas de franquia, das montadoras e maquiadoras, das mega-empresas de boa família. Do Brasil dos liberais socialistas, dos socialistas liberais, todos eles amorais capitalistas. Do Brasil que engana a fome de quem tem fome e a sede de quem tem sede, que investe na engenharia faraônica e na arquitetura irracional de obras públicas sem janelas e sem banheiros, que investe em rebolado, em bolsas-esmola, em cotas pseudo-raciais e em desindustrialização, o Brasil da seca, o Brasil das inundações, dos incêndios e dos desabamentos. Do Brasil sem patentes registradas, sem patentes a registrar, com patentes a negociar; do Brasil da pirataria importada, o Brasil emergente sem saídas de emergência, que acumula vítimas sobre vítimas ano após ano, mas é pródigo ao remendar o buraco na burra dos ditadores que mantêm a miséria das demais populações do mundo inteiro para que eles possam ser considerados responsáveis pelo avanço social em uma economia de mercado. É o Brasil das continências, das reverências, das deferências aos que nada respeitam, aos que roubam mas fazem, desde que tenham feito seja lá o que fizeram. 

 

      É o Brasil sem saúde, sem Escola, é o Brasil esgarçado e escancarado que esperneia ao descobrir que alguém pôde ter lido o correio elegante das autoridades às celebridades e das celebridades às autoridades. É o Brasil das Polícias sem poder de impor a ordem, das Forças Armadas sem armas, o Brasil sem motor, sem portos, sem navios, sem aviões, sem estradas, sem ferrovias, sem projeto, sem destino, sem perspectiva, sem Inteligência. É o Brasil dos colégios sem uniformes, é o Brasil da última moda, que não permite que alguém, por seus méritos ou pela pertinência da instituição à qual serve, intervenha, fardado ou de toga, no real. Um Brasil das várias “soberanias”, que oferece seu terreno e abandona suas fronteiras, disposto a fazer escambo da banana por maconha, da mandioca por coca, que não admite exercer um papel de liderança no continente porque, neste, “não há espaço para relações hegemônicas”…

 

      Não é um Brasil sem vergonha – é o Brasil sem Estado, sem Moral política. É o Brasil da pós-modernidade. Um Brasil de caras pintadas, bem maquiadas, reveladas em palidez. O Brasil das arquibancadas. O Brasil do retorno às queimadas e à agricultura de subsistência. É o Brasil dos ministérios consulares, da diplomacia presidencial, da diplomacia ex-presidencial, da diplomacia municipal. Um Brasil que afirma não permitir que alguém lhe dê palpites, mas só age de acordo com os palpites que lhe são dados, e pretende ser reconhecido como capaz de dar palpites nos destinos do universo; que envia os gurus do Governo e os gurus da Oposição a dar um passeio ao outro lado do mundo para que rezem um “pai nosso” em uníssono e de mãos dadas a quem nada teve a ver com sua História ou com seus problemas, e façam pose de “estadistas” ao lado de quem nada tem nem quer ter a ver com os problemas brasileiros e com a História brasileira. É o Brasil do ridículo estimulado, do absurdo cultivado.

 

      É o Brasil da paz. É o Brasil dos “black blocs“. É o Brasil dos foguetes que explodem no espaço, dos molotovs que explodem nas ruas, das perimetrais já explodidas e por explodir em fumaça e caprichos. É o Brasil dos discursos sem nexo, do caroço que não é semente, dos ossos com Ç que pedem para ser exumados, dos sujeitos separados dos verbos por vírgula, quando não por ponto e vírgula. É o Brasil sem parágrafos, sem travessões, sem dois pontos. É o Brasil dos recessos parlamentares e das férias forenses bem financiadas, do ex-terrorismo e do terrorismo democrático. É o Brasil das Olimpíadas, dos Estádios de Futebol, do Carnaval, dos leilões, do Turismo sexual… É a nossa Pátria em chuteiras despida de orgulho nacional.

 

      É o Brasil do “cadê?”, das faculdades guerrilheiras, das liberdades totais, dos crimes e das contravenções, das condecorações aos condenados, das coleções de títulos honoris causa, dos processos empilhados e engavetados, dos mártires envenenados, dos anjos ressuscitados, dos demônios convertidos, dos beatos injustiçados, das revanches, das guerras santas, dos indultos, da contabilidade criativa, das penas alternativas, do regime semi-aberto, do público que é privado, do privado que é público, da Constituição que desconstitui. O Brasil das “brasilidades”, o Brasil das “brasileirices”. É o Brasil dos contrastes nos quais não se enxergam as contradições. É o Brasil da hipocrisia e da estupidez. É o Brasil da demagogia, o Brasil das invencionices. O Brasil de ninguém. O Brasil de todos.

 

      É o Brasil do um dia seremos… de todos. É o Brasil que já foi nosso deixando de ser Brasil. O Brasil que se despedaça em agonia assistida por desqualificados doutores e práticos em cirurgia, em que canetadas receitam a eliminação do passado, abrindo caminho amplo, geral e irrestrito a um futuro no qual o que se tem como certo é que nenhum Brasil haverá. E não deixará herança alguma.

 

      Em nome de quem ou de que o Brasil tanto se mutila, ninguém sabe, ninguém vê e ninguém se importa com isso. Mas seria, mesmo, importante? A quem importaria? À “Humanidade”?

 

      Continuaremos buscando respostas durante o próximo ano…

  

 

 

 

  

  

 

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