HIPOCRISIA OU VERDADEIRA FÉ?

 
 
 

 

O catolicismo no Brasil impressiona pelos números e pela fé. … são cerca de 145,4 milhões de brasileiros que se declaram fiéis à Igreja comandada pelo papa Bento 16, de acordo com dados de 2005 da CNBB. Isso corresponde a 78,95% da população. … em 1900, 99% dos brasileiros declaravam-se católicos. O percentual de fiéis passou para 89% em 1980 … Os fiéis caíram de 89% para 74% da população …, já que o século 20 foi marcado pela comunicação …, entre 1980 e 2000, … mesmo com as três visitas de João Paulo 2º no período … Um dado em especial preocupa a Igreja. … No último censo do IBGE, 12 milhões de brasileiros se declararam “sem religião”, o que corresponde a 7,4% da população do país. No censo de 1980, esse grupo representava apenas 1,6% dos brasileiros. … há alas que criticam a Igreja por não estar tão presente nas periferias das grandes cidades, embora ela declare ter os pobres como sua prioridade … O movimento foi forte durante as décadas de 60 e 70 e se espalhou pelo país, mas foi enfraquecido desde que o Vaticano rejeitou partes de seus ensinamentosO grupo de maior expressão hoje é a Renovação Carismática Católica … Seu maior ícone, o padre Marcelo Rossi, é um dos campeões em vendas de CD no país. As missas do padre, com músicas e danças, continuam a atrair multidões em São Paulo.”  Larissa Guimarães – Brasil é destaque entre países católicos – noticias.uol.com.br/ultnot/especial/papanobrasil/catolicismo/nobrasil/

 

“O que vou publicar aqui vai irritar ou escandalizar os que não gostam de Cuba ou de Fidel Castro. Não me importo com isso. Se não vês o brilho da estrela na noite escura, a culpa não é da estrela mas de ti mesmo. … Primeiro, a pessoa de Fidel. Ela é maior que a Ilha. Seu marxismo é antes ético que político: como fazer justiça aos pobres? Em seguida, seu bom conhecimento da teologia da libertação. Lera uma motanha [sic] de livros, todos anotados, com listas de termos e de dúvidas que tirava a limpo comigo. Cheguei a dizer: ‘se o Card. Ratzinger entendesse metade do que o Sr. entende de teologia da libertação, bem diferente seria meu destino pessoal e o futuro desta teologia’. Foi nesse contexto que confessou: ‘Mais e mais estou convencido de que nenhuma revolução latino-americana será verdadeira, popular e truinfante [sic] se não incorporar o elemento religioso’. … Por fim uma confissão sua: ‘Fui interno dos jesuitas [sic] por vários anos; eles me deram disciplina mas não me ensinaram a pensar. Na prisão, lendo Marx, aprendi a pensar. Por causa da pressão norte-americana tive que me aproximar da União Soviética. Mas se tivesse na época uma teologia da libertação, eu seguramente a teria abraçado e aplicado em Cuba.’ E arrematou: ’Se um dia eu voltar à fé da infância, será pelas mãos de Fray Betto e de Fray Boff que retornarei’. Chegamos a momentos de tanta sintonia que só faltava rezarmos juntos o Pai-Nosso.” Leonardo Boff: “Os 80 anos de Fidel: confidências” – leonardoboff.com/site/vista/2006/ag11.htm

 

 

     O que publico hoje, aos que me gratificam com sua leitura e seus comentários, poderá causar-lhes estranheza. Mas apenas isso. Não me recordo, sinceramente, de ter apontado ou comentado, alguma vez, questão parecida. Não creio, também sinceramente, que algo que venha a dizer os vá irritar ou escandalizar. Não é essa a minha intenção. Ela continua sendo observar, apontar e comentar as coisas da Política. Nada mais.

 

    Devo lembrar, porém, já de início, que boa parte de nós todos foi criada em ambiente familiar em que “graças a Deus” seria mais uma expressão idiomática que um contrito reconhecimento das ações do Todo-Poderoso; em que sempre se recorria a Deus – que muitas vezes nos parecia atender… – quando nada mais resultasse eficaz para superar qualquer aflição maior ou problema muito sério. Boa parte de nós todos, brasileiros, mesmo tendo sido batizada e celebrado o (primeiro) casamento em um templo católico, assim como tendo batizado seus filhos e procurado que fossem educados em Colégios católicos (hoje terceirizados), não foi crismada nem se lembra de visitar Igrejas, sequer aos Domingos e dias feriados considerados santos, que são gozados em puro lazer. Boa parte de todos nós freqüentou a Missa como freqüentou as quermesses – como uma atividade social do bairro, como as apresentações de Marcelo Rossi são hoje freqüentadas. Boa parte de nós todos não observa os 10 Mandamentos nem vê pecado algum abaixo da linha do Equador, desafiando, dia sim, outro também, todos os 7 pecados capitais e inventando outros tantos mais. Grande parte de nós todos não é religiosa, nem em sentido estrito, nem em sentido amplo. No entanto, a maioria de nós mantém, mesmo que enrustida, certa fé em Deus, que ninguém bem sabe definir o que seja, no máximo “sabe”, ou seja, crê que seja um “espírito superior e criador”, fé esta que não é o mesmo que ter fé em uma Igreja, seja ela qual for. Costumo dizer que assumir toda a responsabilidade por tudo o que fazemos e vemos ser feito de errado ninguém agüenta. É preciso, pelo menos, dividi-la… e buscar algum consolo de vez em quando…

 

    Nesse quadro, a renúncia de Bento XVI nos surpreendeu. E comoveu. Não só os católicos de fé e de fato ou os ditos católicos. Todos ou quase todos. De uma forma ou de outra. E imediatamente todos se consideraram habilitados a discutir esse assunto estritamente interno à Igreja Católica, muito embora o assunto que mais nos devesse interessar, que deveríamos estar querendo muito discutir caso contrário nos arrebentaremos todos, fosse a Política – que não deveria ser confundida com Religião, com religião alguma ou com Igrejas quaisquer, não apenas a católica.

 

    Pois bem. Esse interesse de todos e qualquer um de meter-se nos assuntos da Igreja Católica (e, então, por que não eu, inclusive?) se faz porque a mais elementar consciência política terá claro que o que afeta a Igreja Católica nos afetará a todos, de uma forma ou de outra. Isso, dado o vulto que essa Igreja tomou ao ter sido tão inchada – uma questão demográfica, objetiva, pois. Inchaço que parece ter-se tornado evidente a Bento XVI, que pregou – valendo-se de racionalidade, procurando impor a qualidade e a coerência entre os fiéis em vez de satisfazer-se com a quantidade e os conflitos dela decorrentes – a necessidade de um retorno a uma “Igreja de poucos”. Uma volta às origens. Assim foi a religião cristã primordial. E, com essa decisão, Bento XVI não sacrificou, não expulsou, não torturou, não matou, nem negou amparo a quem quer que fosse que, na Igreja em que exerce (neste momento ainda exerce) a função de autoridade máxima, quisesse permanecer.

 

    Os que se preocupam com essas “coisas da Igreja Católica”, os católicos, os agnósticos, até mesmo os apenas curiosos, talvez mais compreendam como hoje vêm elas sendo tratadas lendo o seguinte texto (publicado em Portugal): “Volta não volta, regressa aquela arremelgada idiotice da ‘necessidade’ de o Vaticano (e, em especial, Ratzinger) se ‘adaptar’ aos tempos que correm. O jornal Público dedica meia dúzia de páginas à coisa e resume-as na seguinte frase: ‘os católicos têm de repensar a sua relação com uma sociedade que lhes escapa’. Esta frase – e os pressupostos em que ela assenta -, salvo o devido respeito, é um equívoco. Desde logo, a Igreja Católica representada pelo Papa Bento XVI é uma instituição cultural milenar que já viu ‘passar’ demasiados ‘modelos’ societários que a história e a ‘condição humana’ se encarregaram de ultrapassar e, nalguns casos, de erradicar totalmente. A Igreja, por natureza, não funciona pela regra da contingência nem se sujeita ao ‘historicismo’. Eles, os ‘modelos’, passaram e a Igreja permaneceu conforme ao instante fundador: ‘tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja’. Depois, Ratzinger é quem menos se importa com a opinião ‘maioritária’ ou que se publica. Desde os anos 70 do século passado que ele afirma que a Igreja deve estar preparada para viver em minoria e não a toque de caixa de ‘movimentos’ ou do ‘progresso’. (…) Este Papa não foi escolhido para ser ‘estrela pop’ ou para abrir telejornais a ler homilias num Ipad. Não possui, aliás, a menor ilusão sobre o homem contemporâneo, o tal que supostamente ‘lhe escapa’ quando ele o topa melhor que ninguém. Bento XVI prefere uma Igreja de poucos, firmes e fortes, a uma Igreja com uma multidão de pusilânimes internos e externos. Quem deve ‘repensar’ a sua relação consigo própria é a sociedade – vazia, indiferente, desesperançada intelectualmente e infantil – à qual ‘escapa’, de facto, o essencial.” (*)

 

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    Aristóteles já nos disse, há muitos séculos, que o Homem é um animal político. Ou seja, que a Política é da natureza do Homem. Talvez fosse pertinente e até complementar, parodiando o filósofo, dizer que o Homem é um animal que crê – que tem fé. Homem nenhum (e não me venham com fricotes feministas, por favor: ser humano nenhum, se preferirem), nem mesmo o mais materialista, o mais determinista, o mais positivista, consegue relacionar-se com o mundo sem depositar fé em algo. Sagrado ou profano. Mesmo que no materialismo; mesmo que no determinismo; mesmo que no ateísmo; mesmo que no niilismo ou no caos como princípio. Ter fé, acreditar, faz parte da natureza humana. É “normal”. É “natural”.

 

    O fundamento da Religião como fenômeno social é exatamente a fé. Nada mais. E fé é paixão. Política e Religião são, assim, faces de uma mesma moeda em que se vêm processando, há séculos, e não apenas 21 deles, as transações de um mercado muito específico – o da inteligência humana. Na teoria, sabemos que deveria haver uma fronteira bem delineada entre elas. Enquanto a Política exige extrema racionalidade, levada às últimas consequências – ou não será Política –, a Religião, seu oposto, exige fé e nada mais – ou Religião não será. Mas, na prática, não sabemos muito bem onde uma termina e a outra começa. Por vezes, a Economia parece poder entrar nessa relação: um custo cobrado, um troco, um lucro visado… Quando não, haverá sempre uma “verdade”, haverá sempre um interesse, haverá sempre uma propaganda, haverá sempre uma fé mediando os fatos, as interpretações e as intenções, fé que a Religião procura explorar e a racionalidade política – ou seja, a racionalidade voltada ao Poder – procura administrar (o Homem é um animal racional, para o bem e para o mal – e se eu não acreditasse nisso, que não requer ser comprovado, se nisso não tivesse , não estaria escrevendo este texto… embora, por vezes, em virtude das evidências, disso também possa eu duvidar…).

 

    É-nos possível observar os fenômenos políticos de uma perspectiva religiosa, apaixonadamente – como, em geral, são observados – assim como nos é possível observar os fenômenos religiosos, não apenas os católicos, da perspectiva política, procurando afastar a paixão. Os primeiros, os fenômenos políticos, são os que nos poderiam interessar, insisto, de perto; e não devem ser interpretados como uma mera questão de foro íntimo. Suas consequências extrapolam o âmbito individual ou grupal. Precisam de ser projetadas a cada uma de nossas opções, quando não porque nos identificamos de um jeito ou de outro com o próximo que possa ser prejudicado, pelo menos para que desastres sociais sejam evitados.

 

    Certo é que não será possível pensar em fazer Política sem considerar os que escutam a palavra das Igrejas e a tomam como a mais correta orientação para suas atitudes. São muitos. Muitos são também os que, também confiantes em sua fé, buscam, não em sua própria consciência, mas nas palavras de um líder político ou qualquer “celebridade” aquela mesma orientação. Absurdos, se não ridículos, porque imaginam poder exterminar a fé na natureza do homem, serão os anti-religiosos. Muito mais os anti-religiosos fanáticos. Tanto quanto os fanáticos religiosos. Nossa percepção da realidade dependerá do resultado de um jogo silencioso que travamos, nós, conosco, em nossa mente, uma questão de fé (que é, esta sim, uma questão de foro íntimo, mesmo que seja fé no Estado ou na sua extinção) versus racionalidade política (que depende de sofisticada elaboração da inteligência, nunca subestimando a natureza humana e suas tendências).

 

    No campo da ação, na realidade mesma, não haverá, tampouco, Política possível fora do Estado (a organização política, ou seja, a do Poder), seja qual for a sua configuração, estejamos ou não satisfeitos com ele, e já toda uma tradição republicana nos mantém a tendência ao Estado laico – não é em Deus, em mistérios e determinações divinas, sobrenaturais, que os Governos e os indivíduos poderão buscar justificar-se… exceto se forem muito hipócritas. Por ser, porém, a fé um fenômeno mais fácil de se produzir, portanto, bem mais ampla e mais forte que a racionalidade política, a pequena Política se vem valendo, à vontade, da fé da população. Embora as religiões, especialmente a católica, nem sempre se tenham muito valido da racionalidade política, ainda que possamos perceber algumas Igrejas – assim como algumas “igrejas”… – presentes e muito à vontade em diferentes nichos do Poder.

 

    Da fé, íntima, pessoal, subjetiva, à autoconvicção de que essa fé seja “a verdadeira” é um passo muito curto. Da convicção na “fé verdadeira” à elaboração dos princípio/meios/fins que a justificam, ou seja, à sua sistematização, será um passo ainda mais curto. Do conjunto sistematizado desses princípio/meios/fins (uma teoria) à prática de um “culto” (preito, veneração, paixão por algo ou alguém, um “mestre”) e à formação de uma “seita” (o “mestre” e seus seguidores) será só meio passo. Ou um pulo. Vale a pregação, ou seja, os sermões, a propaganda. A “seita” se amplia e faz-se, então, a “igreja” (uma assembléia de fiéis) e a “religião” (conjunto de preceitos cuja observância é considerada um dever, uma obrigação).

 

    A fé, maior ou menor, permite as opiniões, sejam mais ou menos convictas. Permite também as escolhas, seja qual for o grau de amplitude e profundidade dessas escolhas. É que nosso raciocínio funciona como um sistema articulado, mesmo que, muitas vezes, isso não se evidencie. Nada se diz, nada se faz, nada se cria, nada se pensa em desacordo com esse sistema. Tudo nele se encaixará, e terá coerência maior ou menor dependendo, é claro, do grau de integridade intelectual de cada um. Assim as coisas se processam desde que o mundo é mundo. E tudo aquilo que nos impressiona ou nos perturba, e não conseguimos compreender com todo o acúmulo de nosso saber dito científico e/ou filosófico – que, muitas vezes, não passa de um mito ou de um erro de interpretação… – a fé no sobrenatural (no que extrapola um princípio considerado natural – o meio físico, a teoria da gravidade, os instintos, as vontades etc. etc.) se encarregará de explicar. E organizar. E orientar.

 

    A fé no sobrenatural, porém, não se revela apenas nas atividades religiosas. Expondo-se fora das Igrejas, alcançando todo o espaço e todo o tempo das atividades humanas, ela se prestará a facilitar muitas cambalhotas espertas ditas “políticas”, permitindo até mesmo que um “Deus seja louvado” se estampe no… “vil metal”… Que fazer? O “vil metal” terá sido abençoado, tornou-se “sagrado”. Por obra de quem? Bem, entre nós, por obra de São José Sarney…

 

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    O cristianismo é um princípio que se firmou, se alastrou, se aviltou, se trincou e se organizou, por sua vez, com suas variadas facetas, por vários meios, com vários fins: várias religiões, várias Igrejas – entre elas a de Calvino, a de Lutero, as Pentecostais, as Evangélicas… algo assim como uma “unidade na diversidade” cristã… – hoje competem em número de fiéis e espaço físico e virtual com várias outras tantas religiões que se tornaram “universais” – como a de Maomé, a de Buda, a de Moisés… Nada disso é de estranhar.

 

    Estranho é verificar que, enquanto se faz tanto tumulto na Igreja Católica, e tantos, dentro dela e fora dela, pretendem nela dar palpites, nenhuma outra Igreja esteja reconsiderando seus dogmas ou a interpretação de seus livros por seus teólogos, e nenhum desses será considerado ultrapassado. E é muito, muito mais estranho, principalmente, que, enquanto criticam a Igreja Católica e suas tradições, os politicamente-corretos se esforcem tanto por manter válidas as seitas e crenças não “ocidentais” originadas há milênios de anos-luz e mantidas exatamente pela manutenção de suas tradições.

 

    Qual seria, então, o problema da Igreja Católica, o que lhe provoca tanta oposição? Sua “ocidentalidade”? Seu poder? Seus dogmas? Qual religião não os tem, alguns ainda muito mais difíceis de engolir que os dogmas católicos? Qual religião não usa o poder que lhe é dado por seus fiéis, mesmo que apenas para manter-se viva e atuante?

 

    Isso posto, devemos considerar ainda: a Igreja Católica é Igreja ou não é?

 

    Se não é, devemos interpretar sua doutrina como sendo uma doutrina política do Vaticano, que seria um Estado semelhante aos demais quaisquer Estados. Com objetivos imperiais ou, no mínimo, hegemônicos. O Vaticano – este Estado teocrático, sim, com todos os problemas, porém, que a administração de qualquer Estado (de qualquer poder) traz como contrapeso: ambições, intrigas, fraturas, disputas, traições, corrupção… – tem poder para tanto? Se tem, assim como o Vaticano é soberano e não nos cabe pretender nele intervir, a discussão a respeito de sua possível influência sobre nós será política, não religiosa – uma questão de interferência externa, uma questão de soberania. Cabe-nos ter cuidado e nos defender.

 

    Mas, se a Igreja Católica é Igreja, como outras Igrejas o são, não sendo a única a ter um Estado como respaldo, como Igreja deverá comportar-se, como Igreja deverá ser avaliada. E lhe deverá ser, como Igreja, reconhecido o direito de procurar manter suas tradições tal como às demais esse direito é garantido, por vezes até mesmo estimulado. Ou, como Igreja, será corroída desde dentro, em processo suicida como o que vemos agora. Não sendo esta a intenção dos fiéis… eles que se cuidem…

 

    Bento XVI manifestou respeito por todas as demais Igrejas e suas tradições todas, não apenas pregando o ecumenismo como tendo sido um dos responsáveis pela criação da Fundação para a Investigação e o Diálogo Interreligioso e Intercultural, em 1999, um fundador, quando ainda Cardeal. “Hoje há grande necessidade de reconciliação, de diálogo e de compreensão recíproca… a investigação e o diálogo interreligioso e intercultural não são uma opção, mas uma necessidade vital ao nosso tempo”, afirmou ele. Por que deveria facilitar que as tradições de sua Igreja não fossem mantidas e respeitadas?

 

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    A Igreja Católica é importante para o mundo? É, de fato, importante para o nosso tempo? Merece tanta preocupação? Seria necessária sua sobrevida? Caso se mantivesse nos limites do exercício da caridade enquanto tal, que sempre foi sua tônica, da presença ativa na educação, em orfanatos e em hospitais, e dos cuidados com as almas dos fiéis, diria que não resta dúvida que sim – porque, mal ou bem, contribuiu com que, por um bom tempo, o individualismo insano, hedonismo exacerbado e a absoluta falta de decoro público não se tornassem a onda avassaladora em que hoje surfam as relações sociais, apesar de que nela já se equilibrassem, há muito tempo, as “celebridades”, intelectuais e empresariais, os governantes e as “modernas” cortes de ambos os tipos – as tais “elites” de todas origens e as tendências, que dão ao restante das populações nacionais um péssimo exemplo.

 

    É interessante, por outro lado, perceber que não é bem exatamente a fé católica o que alguns muitos discutem na Igreja Católica e, fora dela, alguns muitos mais. Isso se põe claro, por exemplo, no que o mesmo Leonardo Boff já citado em epígrafe nos diz a respeito da renúncia de Bento XVI (**): “Eu fiquei aliviado porque a Igreja está sem liderança espiritual que suscite esperança e ânimo.” Meu Deus!!!Que fazia então o Papa Bento XVI no Vaticano, até agora, se não era uma “liderança espiritual” e se não suscitou “esperança e ânimo” aos fiéis? Não liderou espiritualmente quem, a quem não deu ânimo e esperança? Por quê?

 

    Prossegue Boff, “resolvendo o problema” da Igreja Católica (e seriam tantos os “sic”s a colocar no texto que é preferível corrigir a grafia): “Precisamos de um outro perfil de Papa mais pastor que professor, não um homem da instituição-Igreja mas um representante de Jesus que disse: ‘se alguém vem a mim eu não mandarei embora’ (Evangelho de João 6,37), podia ser um homoafetivo, uma prostituta, um transexual. (…) Bento XVI (…) não aceita que na Igreja haja rupturas. Assim que preferiu uma visão linear, reforçando a tradição. Ocorre que a tradição a partir do século XVIII e XIX se opôs a todas as conquistas modernas, da democracia, da liberdade religiosa e outros direitos.”

 

    “Precisamos de um outro perfil de Papa”? Sim? Quem, exatamente, “precisamos”? Caramba! Mesmo com todos os cuidados tomados por séculos a fio para que não houvesse rupturas na Igreja Católica, “as conquistas modernas, da democracia, da liberdade religiosa e outros direitos” (especialmente esses outros direitos…) não se firmaram na Política? Acaso haverá alguém tão preocupado assim com alterar as tradições islâmicas, as judaicas etc. ou mesmo as politeístas? Serão mais “modernas” essas todas? Mais “sagradas”? Por que cargas d’água deverá a Igreja Católica reformular suas tradições? Que dela pulem fora os insatisfeitos, ora, pois! Por que não saltam do barco e correm à terra firme? Porque os tubarões estão mansos, perderam os dentes ou estão acuados, e o mar, de repente, está pra peixe e vale pescar?

 

    Voltemos a Boff: “Ele [Bento XVI] tentou reduzir a Igreja a uma fortaleza contra estas modernidades. E via no Vaticano II o cavalo de Tróia por onde elas poderiam entrar. Não negou o Vaticano II mas o interpretou à luz do Vaticano I que é todo centrado na figura do Papa com poder monárquico, absolutista e infalível. Assim se produziu uma grande centralização de tudo em Roma sob a direção do Papa que, coitado, tem que dirigir uma população católica do tamanho da China. Tal opção trouxe grande conflito na Igreja até entre inteiros episcopados como o alemão e francês e contaminou a atmosfera interna da Igreja com suspeitas, criação de grupos, emigração de muitos católicos da comunidade e acusações de relativismo e magistério paralelo. Em outras palavras na Igreja não se vivia mais a fraternidade franca e aberta, um lar espiritual comum a todos. “

 

    Se dois mais dois são quatro (e ainda são?), que terá sido o que fragilizou tanto a Igreja Católica? Terá sido a manutenção das tradições, do conceito de infalibilidade do Papa, da centralização da autoridade católica? Ou foi o seu inchaço por presumidos seguidores, por razões extra-religiosas, e a “criação de grupos… e acusações de relativismo”? Não terá sido, “em outras palavras”, o fato de que “na Igreja não se vivia mais a fraternidade franca e aberta, um lar espiritual comum a todos”? E por que não mais se vivia a atmosfera de “um lar espiritual comum a todos”? Não seria em virtude do “magistério paralelo” e dosdemais conflitos que culminaram em “uma feroz disputa de poder”?

 

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    Se nos vale o esforço de tentar não confundir causas com conseqüências, façamos agora uma pergunta que é… básica: um teólogo, qualquer teólogo, terá “luz” própria? Se não, será necessariamente um “iluminado”? Ou é apenas alguém que se debruça, com sua fé, ao estudo da Teologia (aos estudos sobre Deus, sua natureza, seus atributos e suas presumidas relações com o Homem e com o Universo)? De que exatamente nos estará falando Leonardo Boff, que afirma “Eu nunca deixei a Igreja. Deixei uma função dentro dela que é de padre. Continuei como teólogo e professor de teologia em várias cátedras aqui e fora do país”? Que verdades absolutas esse teólogo da “libertação” nos traz? Com que autoridade, concedida por quem, pontifica ele: “O perfil do próximo Papa no meu entender não deveria ser o de um homem do poder e da instituição. Onde há poder inexiste amor e desaparece a misericórdia. Deveria ser um pastor, próximo dos fiéis e de todos os seres humanos, pouco importa a sua situação moral, étnica e política (…) Não deveria ser um homem do Ocidente que já é visto como um acidente na história. Mas um homem do vasto mundo globalizado sentindo a paixão dos sofredores e o grito da Terra devastada pela voracidade consumista. Não deveria ser um homem de certezas mas alguém que estimulasse a todos a buscarem os melhores caminhos”?

 

    Ora, se a instituição (uma Igreja) em que o Papa é autoridade máxima tem como princípio a palavra que afirma ser a de Deus e, por isso mesmo, é poderosa, por que o Papa não poderá ser “um homem do poder e da instituição”? Seria porque essa instituição deve ser exterminada? Não sendo o Papa um “homem da instituição-Igreja” nem “do poder” dessa instituição, que seria o Papa, que é o Chefe da Igreja Católica? Deveria ser um fator político contra “o Ocidente que já é visto como um acidente na história”? Mas, por quem, afinal, o Ocidente “já é visto como um acidente na história”? O próximo Papa deveria ser “um homem do vasto mundo globalizado”, não “de certezas”? Como fundar uma religião se não em “certezas”? Sendo um homem das incertezas, como, então, o Papa daria “esperança e ânimo” a “todos”? Ou deveria ele dar “esperança e ânimo” apenas aos movimentos políticos tendentes a abalar a cultura ocidental? Complicado, isso. Serão os mistérios da fé…?

 

    Estará Boff pregando virtudes religiosas ou uma ação política, ou, melhor, um “assalto ao poder” papal camuflado sob um discurso de não-poder, ação essa destinada a contrapor-se ao esforço feito não só por Bento XVI como por muitos outros anteriores Papas para que se mantivesse íntegra a Igreja Católica – e se tornasse, com isso, mais forte? Estará falando de Religião ou apenas de Política, ou seja, apenas de Poder, e de um Poder global real, supranacional, não apenas espiritual, mas também temporal, que deveria ser, então, destinado a quê? Ou de que forma Leonardo Boff – que considera Fidel Castro, aquele que, se não tivesse lido Marx, não saberia pensar, como “uma estrela” que brilha “na noite escura” – imagina usar o poder religioso, algo inerente à religião católica, pois que ela cuida ou presume-se que cuide… das almas…? Quem, “coitado”, estaria apto, em seu entender, a “dirigir uma população católica do tamanho da China”?

 

    O próximo Papa deveria, insiste Boff, orientar-se “pelo Evangelho mas sem espírito proselitista, com a consciência de que o Espírito chega sempre antes do missionário e o Verbo ilumina a todos que vêm a este mundo, como diz o evangelista São João. Deveria ser um homem profundamente espiritual e aberto a todos os caminhos religiosos para juntos manterem viva a chama sagrada que existe em cada pessoa: a misteriosa presença de Deus. E por fim, um homem de profunda bondade, no estilo do Papa João XXIII, com ternura para com os humildes e com firmeza profética para denunciar quem promove a exploração e faz da violência e da guerra instrumentos de dominação dos outros e do mundo”. Juntemos fatos ao discurso, por favor: quem são “os humildes”? Bento XVI alguma vez discriminou “os humildes”? Foi áspero com eles? Faltou-lhes ternura? Quando? Estimulou a “voracidade consumista”? Como? Alguma vez Bento XVI fez algo ou disse algo que impedisse manter “viva a chama sagrada que existe em cada pessoa: a misteriosa presença de Deus”? Em que circunstâncias?

 

    Se o próximo Papa deveria ser, segundo Boff, “alguém que estimulasse a [sic!] todos a buscarem os melhores caminhos”, quais seriam esses “melhores caminhos”? Quantos e quais são os “caminhos religiosos” que levam a cobiçar o poder de determinada Igreja? Que significa, afinal, esse discurso todo? Que o próximo Papa deve ser um “revolucionário”? Que “revolução” deverá o próximo Papa pregar ou fazer? Deverá liderar ou submeter-se a uma liderança? Deverá ser o Papa da Igreja Católica? Ou o Comandante-em-Chefe do Exército ou o Secretário-Geral do Partido, conciliando todos os movimentos das brigadas, divisões e facções? E como se administraria o Vaticano? Este Estado deveria adotar o “socialismo do século XXI”? Aliás, que “revolução” pregou João XXIII? Consideremos que este foi Papa de 1958 a 1963 – outros tempos, outras circunstâncias, outros apelos… Consideremos, ainda, que, já em 1959, ele confirmaria o Decretum aprovado por Pio XII em 1949 que proibia os católicos de votar em candidatos, partidos ou governos comunistas, ou apoiá-los…

 

    Inspirados por que coisa ou por quem estarão Leonardo Boff e sua “Teologia da Libertação”? Por um “Espírito Santo”, que “chega sempre antes do missionário”? Considera-se iluminado pelo “Verbo” que “ilumina a todos que vem a este mundo”? Alguém de nós, seja religioso ou não religioso, temente ou indiferente a Deus, poderia pedir mais proselitismo, proselitismo especificamente político, que o que já se pode encontrar nesse discurso tão… “teológico”?

 

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    Na verdade, o que é dito por Boff, o teólogo “da Libertação”, como referente às “coisas da Igreja Católica” soa demagógico, não resta dúvida; mas é tão simplório, tão rudimentar e tão ingênuo, que se torna difícil crer que ele seja movido pela hipocrisia. É não. Boff será movido, antes, apenas pela fé. Apesar de que a fé que ele externa não seja a fé no Papa ou no princípio, nas tradições e nos dogmas da Igreja Católica Apostólica Romana – é outra fé, uma fé ardente, visceral, em outras coisas, não nas “coisas da Igreja Católica”. E seu discurso inteiro, transcrito abaixo tal como se encontra publicado, é um depoimento extremamente sincero, bastante coerente com essa sua fé, e absolutamente abalizado, do qual não se poderá extrair outra conclusão, porém, que a de que a “Teologia da Libertação” não poderá se ocupar da função primordial que a Igreja Católica se propõe suprir, que é a de… salvar almas. Ou não é?

 

    A “Teologia da Libertação” não está preocupada com salvar almas, por certo porque todas já estarão salvas, pois “o Verbo ilumina a todos que vêm a este mundo”… Estará, então, preocupada com quê? Com colecioná-las? A preocupação manifesta é exclusivamente pragmática. E essencialmente política. Sendo assim, os que professam fé na “Teologia da Libertação” não poderão interpretar um Papa como um “homem da Igreja”, porque isso não lhes convém, muito menos poderão vê-lo como um “homem de Deus”, mas apenas o verão como um “homem de Estado” cuja bandeira, em uma guerra a ser travada contra a “episódica cultura ocidental”, teria inscrita a palavra de Cristo interpretada pelos teólogos “da Libertação”. Uma nova Cruzada será, então, iniciada, tendo no Comando um Papa “revolucionário” e, nas tropas, todos aqueles “fiéis” que singraram quaisquer e “todos os caminhos religiosos”. Contra todos os “infiéis”. E, se “onde há poder inexiste amor e desaparece a misericórdia”, as coisas todas só mais se complicam… ou não?

 

    Conclui-se ainda, desse mesmo discurso, que a “Teologia da Libertação” não é Teologia. Nem é Ciência, nem é Filosofia. É apenas um “agito” político. Assim sendo, procura dirigir a opinião pública a respeito de Bento XVI, que procurou manter as tradições de sua Igreja: ele poderá, segundo Boff, ser “estigmatizado, de forma reducionista, como o Papa onde [sic!] grassaram os pedófilos, onde [sic de novo! e esses últimos “sic”s se devem a que não seja possível corrigir o texto sem alterá-lo!] os homoafetivos não tiveram reconhecimento e as mulheres foram humilhadas como nos USA negando o direito de cidadania a uma teologia feita a partir do gênero. E também entrará na história como o Papa que censurou pesadamente a Teologia da Libertação, interpretada à luz de seus detratores, e não à luz das práticas pastorais e libertadoras de bispos, padres, teólogos, religiosos/as e leigos que fizeram uma séria opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da vida e da liberdade. Por esta causa justa e nobre foram incompreendidos por seus irmãos de fé, e muitos deles presos, torturados e mortos pelos órgãos de segurança do Estado militar.”

 

    Bem, além de que Bento XVI não seja um local qualquer “onde” padres pedófilos pudessem, de repente, ter grassado, a posição deste Papa – que ora anuncia ao mundo sua renúncia, prevista no Direito Canônico, por reconhecer seus particulares impedimentos, sejam eles de que ordem forem – em relação aos “pecados dos sacerdotes e pessoas consagradas cometidos contra pessoas que estavam aos seus cuidados”, foi expressa, pelo menos, durante o Congresso Eucarístico de Dublin, ano passado, e os jornais a publicaram: “Em vez de lhes mostrarem o caminho para Cristo, para Deus, em vez de lhes relatarem o testemunho da sua bondade () minaram a credibilidade da mensagem da Igreja (…) Como podemos explicar que as pessoas que recebem regularmente o Corpo de Cristo e confessam os seus pecados no sacramento da penitência, tenham cometido estas ofensas? É um mistério. Contudo, tudo prova que o seu cristianismo não era mais alimentado pelo feliz encontro com Jesus Cristo. Tinha-se tornado apenas uma questão de hábito.” Não consta, pois, que Bento XVI tenha compactuado com isso. Assim como não compactuou com qualquer “questão de hábito” que tentasse alterar ou substituir por outra coisa qualquer o cristianismo que sua Igreja se dispõe a propagar.

 

    Quanto ao mais, haverá alguma luz que favoreça o contorno da “Teologia da Libertação” para que ela saia bem na foto? Qual? Só, mesmo, se for a do farol do Castillo de los Tres Reyes Magos del Morro… Já uma causa “a favor da vida e da liberdade” assim como uma “opção pelos pobres” serão “nobres” e “sérias” se de fato forem sérias e nobres, caso não sejam acenadas apenas por demagogia. E essa causa e essa opção serão políticas. Estritamente políticas. Politicamente terá sentido propagá-las. Mas são uma questão de consciência, não de fé. Poderão ser a causa e a opção de qualquer um que não seja religioso e qualquer um que seja religioso, apesar de sua religião, qualquer que seja ela. Além de que Igrejas não emprestam qualquer “cidadania” a quem quer que seja, muito menos a uma teoria qualquer. Quem poderia conceder “cidadania” a alguém seria o Vaticano, que é um Estado soberano onde todos “encontram mil razões para serem moderados e até conservadores”, que tem suas Leis civis e uma sede em Roma, cidade que centraliza tudo o que se refere à Igreja Católica, de onde “nada vem… sem antes” lhe “ter sido enviado”, e que deixou de ser “sagrada” em Fevereiro de 1984.

 

    Caberá ainda, talvez, aqui perguntar: quantos e quais serão os “caminhos religiosos” que levarão a uma heresia? Igrejas apenas mantêm ou não mantêm seus princípio/meios/fins e suas tradições como bem querem e bem entendem. E toda e qualquer Igreja terá uma ordem que aceitamos ou não. Se não aceitamos, estamos fora dela. Simples assim. Se a Igreja Católica não aceita discutir o patriarcado ou questões “de gênero”, que também são questões eminentemente políticas, muito menos acata qualquer “teologia feita a partir do gênero” (?!?), nada (ainda…) a obriga a fazer isso, assim como nada obriga quem quer que seja a incluir-se entre seus teólogos, seus pastores ou seus fiéis. Entre estes, eu própria não me incluo. Nem estou nessa Igreja, nem em outra qualquer. E daí? Esteja eu onde estiver, continuarei preocupada com a Política; esteja onde estiver a Igreja Católica Apostólica Romana, é de se supor que ela continuará sendo uma Igreja e, assim sendo, deverá estar preocupada com a Fé. Convenhamos: racionalidade política é racionalidade política; fé é fé. E fé não será mistério algum. É da natureza…

 

    Quem crê, pois, de fato, que o Espírito Santo fala pela voz dos Cardeais, como diz crer Leonardo Boff, que aguarde, com fé, a decisão do próximo Conclave e a eleição do sucessor de Bento XVI. Isso não lhe será tão difícil.

 

    O difícil, mesmo, desde já, é compreender como Leonardo Boff – que afirma nunca ter deixado a Igreja, apenas deixou de “ser padre”, que continuou “como teólogo e professor de teologia em várias cátedras aqui e fora do país”, que tão “generosamente” nos expôs suas idéias a respeito das “coisas da Igreja Católica” – possa acreditar que o mesmo Espírito Santo se tenha omitido na eleição de Bento XVI. Este enguiço, sim, poderá ser um mistério. Um grande, um enorme mistério.

    Ou nem tanto…

 

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(*)   – O Essencial – http://portugaldospequeninos.blogs.sapo.pt/3190324.html

(**)http://leonardoboff.wordpress.com/2013/02/15/que-papa-esperar-que-nao-seja-um-bento-xvii/

Que Papa esperar que não seja um Bento XVII?

15/02/2013

Dei generosamente uma entrevista à Folha de São Paulo que quase não aproveitou nada do que disse e escrevi. Então publico a entrevista inteira aqui no blog para reflexão e discusão entre os interessados pelas coisas da Igreja Católica.As perguntas foram reordenadas: Lboff

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1.Como o Sr. recebeu a renúncia de Bento XVI?

R/ Eu desde o principio sentia muita pena dele, pois pelo que o conhecia, especialmente em sua timidez, imaginava o esforço que devia fazer para saudar o povo, abraçar pessoas, beijar crianças. Eu tinha certeza de que um dia ele, aproveitaria alguma ocasião sensata, como os limites fisicos de sua saúde e menor vigor mental para renunciar. Embora mostrou-se um Papa autoritário, não era apegado ao cargo de Papa. Eu fiquei aliviado porque a Igreja está sem liderança espiritual que suscite esperança e ânimo. Precisamos de um outro perfil de Papa mais pastor que professor, não um homem da instituição-Igreja mas um representante de Jesus que disse: “se alguém vem a mim eu não mandarei embora” (Evangelho de João 6,37), podia ser um homoafetivo, uma prostituta, um transsexual.

 

2. Como é a personalidade de Bento XVI já que o Sr. privou de certa amizade com ele?

R/ Conheci Bento XVI nos meus anos de estudo na Alemanha entre 1965-1970. Ouvi muitas conferências dele mas não fui aluno dele. Ele leu minha tese doutoral: O lugar da Igreja no mudo secularizado” e gostou muito a ponto de achar uma editora para publicá-la, um calhamaço de mais de 500 pp. Depois trabalhamos juntos na revista internacional Concilium, cujos diretores se reuniam todos os anos na semana de Pentecostes em algum lugar na Europa. Eu a editava em portugues. Isso entre 1975-1980. Enquanto os outros faziam sesta eu e ele passeávamos e conversávamos temas de teologia, sobre a fé na América Latina, especialmente sobre São Boaventura e Santo Agostinho, do quais é especialista e eu até hoje os frequento a miúde. Depois em 1984 nos encontramos num momento conflitivo: ele como meu julgador no processo do ex-Santo Ofício, movido contra meu livro Igreja: carisma e poder” (Vozes 1981). Ai tive que sentar na cadeirinha onde Galileo Galilei e Giordano Bruno entre outros sentaram. Submeteu-me a um tempo de “silêncio obsequioso”; tive que deixar a cátedra e proibido de publicar qualquer coisa. Depois disso nunca mais nos encontramos. Como pessoa é finíssimo, tímido e extremamente inteligente.

 

3. Ele como Cardeal foi o seu Inquisidor depois de ter sido seu amigo: como viu esta situação?

R/Quando foi nomeado Presidente da Congregação para a Doutrina da Fé(ex-Inquisição) fiquei sumamente feliz. Pensava com meus botões: finalmente teremos um teólogo à frente de uma instituição com a pior fama que se possa imaginar. Quinze dias após me respondeu, agradecendo e disse: vejo que há várias pendências suas aqui na Congregação e temos que resolvê-las logo. É que praticamentea cada livro que publicava vinham de Roma perguntas de esclarecimento que eu demorava em responder. Nada vem de Roma sem antes de ter sido enviado a Roma. Havia aqui bispos conservadores e perseguidores de teólogos da libertação que enviavam as queixas de sua ignorância teológica a Roma a pretexto de que minha teologia poderia fazer mal aos fiéis. Ai eu me dei conta: ele já foi contaminado pelo bacilo romano que faz com que todos os que aitrabalham no Vaticano rapidamente encontram mil razões para serem moderados e até conservadores. Então sim fiquei mais que surpreso, verdadeiramente decepcionado.

 

4. Como o Sr. recebeu a punição do “silêncio obsequioso”?

R/ Após o interrogatório e a leitura de minha defesa escrita que está como adendo da nova edição de Igreja: charisma e poder (Record 2008) são 13 cardeais que opinam e decidem. Ratzinger é um apenas entre eles. Depois submetem a decisão ao Papa. Creio que ele foi voto vencido porque conhecia outros livros meus de teologia, traduzidos para alemão e me havia dito que tinha gostado deles, até, uma vez, diante do Papa numa audiência em Roma fez uma referência elogiosa. Eu recebi o “silêncio obsequioso” como um cristão ligado à Igreja o faria: calmamente o acolhi. Lembro que disse: “é melhor caminhar com a Igreja que sozinho com minha teologia”. Para mim foi relativamente fácil aceitar a imposição porque a Presidência da CNBB me havia sempre apoiado e dois Cardeais Dom Aloysio Lorscheider e Dom Paulo Evaristo Arns me acompanharam a Roma e depois participaram, numa segunda parte, do diálogo com o Card. Ratzinger e comigo. Ai éramos três contra um. Colocamos algumas vezes o Card Ratzinger em certo constrangimento pois os cardeais brasileiros lhe asseguravam que as críticas contra a teologia da libertação que ele fizera num document saido recentemente eram eco dos detratores e não uma análise objetiva. E pediram um novo documento positivo; ele acolheu a idéia e realmente o fez dois anos após. E até pediram a mim e ao meu irmão teólogo Clodovis que estava em Roma que escrevêssemos um esquema e o entregássemos na Sagrada Congregação. E num dia e numa noite o fizemos e o entregamos.

 

5. O Sr deixou a Igreja em 1992. Guardou alguma mágoa de todo o affaire no Vaticano?

R/ Eu nunca deixei a Igreja. Deixei uma função dentro dela que é de padre. Continuei como teólogo e professor de teologia em várias cátedras aqui e fora do pais. Quem entende a lógica de um sistema autoritário e fechado, que pouco se abre ao mundo, não cultiva o diálogo e a troca (os sistemas vivos vivem na medida em que se abrem e trocam) sabe que, se alguém, como eu, não se alinhar totalmente a tal sistema, será vigiado, controlado e eventualmente punido. É semelhante aos regime de segurança nacional que temos conhecido na A.Latina sob os regimes militares no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Dentro desta lógica o então Presidente da Congregação da Doutrina da Fé (ex-Santo Oficio, ex-Inquisição), o Card. J. Ratzinger condenou, silenciou, depôs de cátedra ou transferiu mais de cem teólogos. Do Brasil fomos dois: a teóloga Ivone Gebara e eu. Em razão de entender a referida lógica, e lamentá-la, sei que eles estão condenados fazer o que fazem na maior das boas vontades. Mas como dizia Blaise Pascal:”Nunca se faz tão perfeitamente o mal como quando se faz de boa vontade”. Só que esta boa-vontade não é boa, pois cria vítimas. Não guardo nenhuma mágoa ou ressentimento pois exerci compaixão e misericórdia por aqueles que se movem dentro daquela lógica que, a meu ver, está a quilômetros luz da prática de Jesus. Aliás é coisa do século passado, já passado. E evito voltar a isso.

 

6. Como o Sr. avalia o pontificado de Bento XVI? Soube gerenciar as crises internas e externas da Igreja?

R/ Bento XVI foi um eminente teólogo mas um Papa frustrado. Não tinha o carisma de direção e de animação da comunidade, como tinha João Paulo II. Infelizmente ele será estigmatizado, de forma reducionista, como o Papa onde grassaram os pedófilos, onde os homoafetivos não tiveram reconhecimento e as mulheres foram humilhadas como nos USA negando o direito de cidadania a uma teologia feita a partir do gênero. E também entrará na história como o Papa que censurou pesadamente a Teologia da Libertação, interpretada à luz de seus detratores, e não à luz das práticas pastorais e libertadoras de bispos, padres, teólogos, religiosos/as e leigos que fizeram uma séria opção pelos pobres contra a pobreza e a favor da vida e da liberdade. Por esta causa justa e nobre foram incompreendidos por seus irmãos de fé, e muitos deles presos, torturados e mortos pelos órgãos de segurança do Estado militar. Entre eles estavam bispos como Dom Angelelli da Argentina e Dom Oscar Romero de El Salvador. Dom Helder foi o mártir que não mataram. Mas a Igreja é maior que seus papas e ela continuará, entre sombras e luzes, a prestar um serviço à humanidade, no sentido de manter viva a memória de Jesus, de oferecer uma fonte possível de sentido de vida que vai para além desta vida. Hoje sabemos pelo Vatileaks que dentro da Cúria romana se trava uma feroz disputa de poder, especialmente entre o atual Secretário de Estado Bertone e o ex-secretário Sodano já emérito. Ambos tem seus aliados. Bertone, aproveitando as limitações do Papa, construiu praticamente um governo paralelo. Os escândalos de vazamento de documentos secretos da mesa do Papa e do Banco do Vaticano, usado pelos milionários italianos,alguns da mafia, para lavar dinheiro e mandá-lo para fora, abalaram muito o Papa. Ele foi se isolando cada vez mais. Sua renúncia se deve aos limites da idade e das enfermidades mas agravadas por estas crises internas que o enfraqueceram e que ele não soube ou não pode atalhar a tempo.

 

7. O Papa João XXIII disse que a Igreja não pode virar um museu mas uma casa com janelas e portas abertas. O Sr. acha que Bento XVI não tentou transfomar a Igreja novamente em algo como um museu?

R/ Bento XVI é um nostálgico da síntese medieval. Ele reintroduziu o latim na missa, escolheu vestimentas de papas renascentistas e de outros tempos passados, manteve os hábitos e os cerimoniais palacianos; para quem iria comungar, oferecia primeiro o anel papal para ser beijado e depois dava a hóstia, coisa que nunca mais se fazia. Sua visão era restauracionista e saudosista de uma síntese entre cultura e fé que existe muito visível em sua terra natal, a Baviera, coisa que ele explicitamente comentava. Quando na Universidade onde ele estudou e eu tambem, em Munique, viu um cartaz me anunciando como professor visitante para dar aulas sobre as novas fronteiras da teologia da libertação pediu o reitor que protelasse sine dia o convite já acertado. Seus ídolos teológicos são Santo Agostinho e São Boaventura que mantiveram sempre uma desconfiança de tudo o que vinha do mundo, contaminado pelo pecado e necessitado de ser resgatado pela Igreja. É uma das razões que explicam sua oposição à modernidade que a vê sob a ótica do secularism e do relativismo e for a do campo de influência do cristianismo que ajudou a formar a Europa.

 

8. A igreja vai mudar, em sua opinião, a doutrina sobre o uso de preservativos e em geral a moral sexual?

R/ A Igreja deverá manter as suas convicções, algumas que estima irrenunciáveis como a questão do aborto e da não manipulação da vida. Mas deveria renunciar ao status de exclusividade, como se fora a única portadora da verdade. Ele deve se entender dentro do espaço democrático, no qual sua voz se faz ouvir junto com outras vozes. E as respeita e até se dispõe a aprender delas. E quando derrotada em seus pontos de vista, deveria oferecer sua experiência e tradição para melhorar onde puder melhorar e tornar mais leve o peso da existência. No fundo ela precisa ser mais humana, humilde e ter mais fé, no sentido de não ter medo. O que se opõe à fé não é o ateismo, mas o medo. O medo paraliza e isola as pessoas das outras pessoas. A Igreja precisa caminhar junto com a humanidade, porque a humanidade é o verdadeiro Povo de Deus. Ela o mostra mais conscientemente mas não se apropria com exclusividade desta realidade.

 

9. O que um futuro Papa deveria fazer para evitar a emigração de tantos fiéis para outras igrejas, e especialmente pentecostais?

R/ Bento XVI freou a renovação da Igreja incentivada pelo Concílio Vaticano II. Ele não aceita que na Igreja haja rupturas. Assim que preferiu uma visão linear, reforçando a tradição. Ocorre que a tradição a partir do seéculo XVIII e XIX se opôs a todas as conquistas modernas, da democracia, da liberdade religiosa e outros direitos.Ele tentou reduzir a Igreja a uma fortaleza contra estas modernidades. E via no Vaticano II o cavalo de Tróia por onde elas poderiam entrar. Não negou o Vaticano II mas o interpretou à luz do Vaticano I que é todo centrado na figura do Papa com poder monárquico, absolutista e infalível. Assim se produziu uma grande centralização de tudo em Roma sob a direção do Papa que, coitado, tem que dirigir uma população católica do tamano da China.Tal opção trouxe grande conflito na Igreja até entre inteiros episcopados como o alemão e frances e contaminou a atmosfera interna da Igreja com suspeitas, criação de grupos, emigração de muitos católicos da comunidade e acusações de relativismo e magistério paralelo. Em outras palavras na Igreja não se vivia mais a fraternidade franca e aberta, um lar espiritual comum a todos. O perfil do próximo Papa, no meu entender, não deveria ser o de um homem do poder e da instituição. Onde há poder inexiste amor e desaparece a misericórdia. Deveria ser um pastor, próximo dos fiéis e de todos os seres humanos, pouco importa a sua situação moral, étnica e política. Deveria tomar como lema a frase de Jesus que já citei anteriormente:”Se alguém vem a mim, eu não o mandarei embora”, pois acolhia a todos, desde uma prostituta como Madalena até um teólogo como Nicodemos. Não deveria ser um homem do Ocidente que já é visto como um acidente na história. Mas um homem do vasto mundo globalizado sentindo a paixão dos sofredores e o grito da Terra devastada pela voracidade consumista. Não deveria ser um homem de certezas mas alguém que estimulasse a todos a buscarem os melhores caminhos. Logicamente se orientaria pelo Evangelho mas sem espírito proselitista, com a consciência de que o Espírito chega sempre antes do missionário e o Verbo ilumina a todos que vem a este mundo, como diz o evangelista São João. Deveria ser um homem profundamente espiritual e aberto a todos os caminhos religiosos para juntos manterem viva a chama sagrada que existe em cada pessoa: a misteriosa presença de Deus. E por fim, um homem de profunda bondade, no estilo do Papa João XXIII, com ternura para com os humildes e com firmeza profética para denunciar quem promove a exploração e faz da violência e da guerra instrumentos de dominação dos outros e do mundo. Que nas negociações que os cardeais fazem no conclave e nas tensões das tendências, prevaleça um nome com semelhante perfil. Como age o Espírito Santo ai é mistério. Ele não tem outra voz e outra cabeça do que aquela dos cardeais. Que o Espírito não lhes falte.          

 

 

 

 

 

 

 

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