O Brasil vem produzindo novelas emocionantes, dramatizadas por bons e maus atores, profissionais e amadores, que nos oferecem alguns episódios trágicos, outros cômicos, mas sempre nos afetam a emoção, cujos capítulos podem ser acompanhados todos os dias na Imprensa diária e cujo final todos nós procuramos prever.
Mas, além do noticiário nacional, temos acesso ao internacional e a inúmeras outras séries, produzidas em ambiente estrangeiro, para a televisão.
“NCIS” é uma delas. Fantasiosos, evidentemente, são episódios curtos, com começo, meio e fim, a respeito do Serviço de Investigação Criminal da Marinha norte-americana, que resolve assassinatos, espionagem, terrorismo, furto de materiais etc. ocorridos no âmbito da Força. Os crimes praticados, que sempre deslinda, por vezes sofrendo baixas, não só denunciando como punindo os envolvidos sem considerar cargos ou patentes das vítimas ou dos responsáveis, podem ser vistos como um tema em segundo plano. O que há de mais interessante para acompanhar todos os dias é a ação, os diálogos inteligentes e as razões dos personagens. Independentemente de diferentes idiossincrasias manifestadas em sua vida privada, demonstram, todos eles, ter bem claramente compreendidas a sua participação e sua responsabilidade na segurança nacional.
Após cada episódio do “NCIS”, ao desligar a televisão, porque outras séries não despertam muito o meu interesse, não posso deixar de comparar o que vi, li e ouvi com o que vejo, ouço e leio na realidade brasileira e naquilo que vem sendo chamado de “Defesa Nacional”.
Um episódio que, no dia 22 último, pude acompanhar na tela, não da TV, mas do computador, diz-nos de um “Livro Branco” do Ministério da Defesa. O personagem que ganhou voz principal nesse episódio é o Chefe da Assessoria de Planejamento Institucional desse Ministério, o General Júlio Amo Júnior.
Na reportagem intitulada “Livro Branco de Defesa Nacional vai aumentar segurança do País, diz general” (*), produzida e divulgada pela Agência Câmara de Notícias, leio que, segundo teria dito o General, qualquer preocupação com a fragilidade do poder bélico brasileiro é “leviana, uma vez que as munições possuem prazo de validade e não devem ser produzidas em grande quantidade em tempos de paz”.
O General nos teria afirmado também que “O Livro Branco é uma ferramenta geradora de confiança mútua e funciona como um redutor de tensões (…) nos ajuda em termos de transparência, porque estamos mostrando nossas reais intenções, o que realmente pretendemos com a nossa capacidade de defesa, e ainda que o Brasil é um País que prima pela cooperação na América do Sul”. Expondo “publicamente os objetivos do Brasil na área de defesa”, o Livro traz “dados estratégicos, orçamentários, institucionais e materiais sobre as Forças Armadas e a Defesa Nacional”. Mesmo assim, “não fragiliza o sistema de defesa brasileiro” porque, conforme o General também nos parece querer esclarecer, “não revela informações relacionadas às chamadas tecnologias sensíveis, como enriquecimento de urânio, que poderiam servir de base para ataques contra o patrimônio do País.”
Que raios significa exatamente o que disse o General? Que, além de colocar as FFAA a serviço da defesa civil e cumprindo funções policiais, tal como vem fazendo, outro encargo que o Ministério da Defesa poderá assumir é o de proteger o segredo de “tecnologias sensíveis”. Apesar, porém, de que tenhamos segredos a guardar na área de enriquecimento de urânio, não temos tecnologia militar suficiente para enfrentar qualquer Potência de fato que se mostre adversa às nossas intenções, quaisquer que sejam elas. E isso é mais do que sabido, mas não nos preocupa, porque estamos em tempos de paz, e, assim sendo, não será necessário sequer que as FFAA tenham munição, porque “munição não deve ser produzida em grande quantidade em tempos de paz” – nem produzida para treinamento, nem, portanto, para enfrentar uma emergência. As FFAA, pior, não têm armas para usar a munição que não têm. Quem nos forneceria armas em quantidade e qualidade que nos fossem necessárias em um eventual conflito? Ainda bem que nenhuma emergência ocorrerá porque o Livro Branco “funciona como um redutor de tensões”… Se alguma ocorresse, é bem possível que não houvesse como tentar defender aqueles nossos segredos tecnológicos.
A soma das palavras ditas pelo General ou a ele atribuídas tem como resultado uma declaração confusa ou propositadamente destinada a confundir. Mas as palavras estão, e não nos parecem ter sido mal escolhidas, portanto, devem ser acolhidas e interpretadas. Afinal, quais tecnologias devemos defender? As que já adquirimos, as que pudéssemos desenvolver ou já ter desenvolvido, ou apenas as “sensíveis”, porque somente estas servem “de base para ataques ao patrimônio do País”? Que patrimônio? Os ataques virão de quem? Quem nos ameaça? Seria um inimigo interno? Quem é ele? O narcotráfico? Esse é internacional. Tem armas e munição. Contra ele, se quisermos recuperar o território literalmente invadido, precisaremos de armas e munição. Será ninguém, porque não temos inimigos? Os vizinhos? Esses não serão, pois nosso País “prima pela cooperação”. Nem serão as Potências que poderiam se sentir ameaçadas por nossas reais intenções, pois essas intenções (quais são, exatamente?) são deixadas bem transparentes, demonstrando-lhes o quanto somos confiáveis… para que a confiança seja mútua. Essa confiança, se mútua é, será mútua baseada em quê? Que é o que nos permite ter confiança nos demais? Um “Livro Branco” que tenham escrito e publicado?
São declarações e providências como essas que nos dão a certeza de que as FFAA nacionais de hoje não são as FFAA de ontem, por mais que queiramos e tentemos pôr panos quentes nesse assunto. As Forças são outras, e não porque sejam mais (ou menos) aparelhadas, tecnológicas, preparadas, humanizadas, civilizadas, capazes, mas porque não têm noção alguma de para que servem ou para que estão. Ou de para que não estão e não servem. E não será dos indivíduos que hoje alcançam os mais altos escalões da carreira militar a culpa disso. Nem é que esses indivíduos tenham pouca inteligência ou má fé. Assim foi conformado o seu espírito (embora consideremos que haja exceções que confirmem a regra); assim lhes foi ensinado, pouco a pouco, nas próprias Escolas militares de diferentes níveis – a pensar, de forma absolutamente avessa ao espírito militar e a qualquer interesse de Estado, a partir do “princípio” de que a “paz universal” deva ser o único objetivo válido a quaisquer Instituições nacionais e que ela possa ser obtida por meio da desordem hoje evidente nas mesmas Instituições nacionais e na idéia que a nossa população possa delas fazer e fazer das ameaças que pairam sobre nosso País.
Ao que tudo indica, e isso se vem comprovando não só no discurso dos Generais do Governo como no dos Políticos do Congresso, na Imprensa, nas esquinas, nos bares e nos lares, o nacional desapareceu definitivamente do nosso imaginário e, portanto, do imaginário de nossas FFAA, que são nada mais que o reflexo (em tese, armado) do que somos todos e do que todos nós queremos ser. Dele restou apenas a palavra, sem muito significado, para designar exatamente quê, não se sabe. O Estado não será, porque, na Constituição, já abdicamos da soberania. O território também não é, porque ele não preocupa, uma vez que primamos “pela cooperação” e, assim, a defesa contra possíveis pretensões dos vizinhos próximos e distantes não nos será necessária. “Cooperamos”. Palavra de honra: não compreendo! Ou o meu Português anda muito defasado ou devo estar, talvez por isso mesmo, tão desinformada e pensar tão tolamente quanto os Oficiais da Reserva, que são as Forças de ontem, e podem hoje ser considerados desinformados e tolos…
Se, como afirma o Deputado “verde” Alfredo Sirkis nesse mesmo capítulo dessa emocionante novela, as únicas ameaças ao Brasil a considerar são o terrorismo, a falta d’água e a possibilidade de “conflitos entre a China e a Rússia por terras agricultáveis”, realmente muito remotamente a paz nacional será perturbada. Terrorismo já demonstramos por A + B não saber que possa vir a ser, pois somos governados por ex-terroristas que nós mesmos escolhemos para nos governar, e convivemos perfeitamente bem com o terrorismo do narcotráfico, dedicados que estamos a pacificar favelas; nossa água já se tornou uma commodity; China e Rússia estão muito distantes de nós, mas poderão ser tranqüilizadas, pelos funcionários do Ministério das Relações Exteriores, de que não interferiremos em seus interesses… Afinal, por que é chamado de “branco” o tal Livro que trata da transparência de nossas intenções e visa a aumentar nossa segurança? Branca é a paz nas ilustrações dos artistas. Transparente é o sentimento dos amantes nos versos dos poetas.
Ao que tudo indica, também, a tradução que se faz de “segurança nacional” é o Brasil inteiro poder imaginar que, comportando-se “bem” (?), não está sendo e não será ameaçado, nem representa qualquer ameaça a seja lá quem for. É como se o nosso País tivesse por obrigação obter, a qualquer custo, a tolerância das Potências reais ou virtuais ao incômodo que causam a nossa existência, a nossa dimensão e o nosso próprio potencial. É como se o País que devemos defender não precisasse temer ameaças externas porque conta (quando ninguém se sente por ele ameaçado) com a simpatia e, mesmo, o carinho dos diferentes países que coexistem, com todos os seus conflitos, no mundo e, especialmente, na extensão territorial atribuída à dita “América latina”, todos eles soberanos, com diferentes objetivos estratégicos e diferentes capacidades, inclusive bem maiores que a nossa.
E, embora países “pacíficos” possam pretender adquirir os conhecimentos tecnológicos que possamos nós ter produzido, isso, por certo, para fabricar, com toda a “sensibilidade” que demonstram ter, o armamento com o qual poderão manter a “paz universal”, o cuidado com tecnologias que desenvolvemos no processo de enriquecimento de urânio parece significar, por sua vez, uma preocupação muito mais econômico-industrial que política. Afinal, é só a economia o que preocupa esse Governo, tal como preocupou os anteriores, todos eles retirando das FFAA os recursos necessários para que elas fossem, de fato, o instrumento de defesa do Estado contra seus inimigos internos e externos. É como se nosso País tivesse, de fato, o “compromisso” de manter os elementos de suas FFAA ativos e distraídos com qualquer assunto menor apenas para que possam integrar as Forças de Paz da ONU, mesmo que só os enviemos se e quando o Governo assim queira. É como se o desempenho das FFAA no esporte, na segurança pública, na construção civil e nas funções de assistência aos desfavorecidos pudessem se sobrepor ao seu dever maior, de natureza política, ou mesmo substituí-lo com vantagens, permitindo e consolidando uma posição de poder “soft” destacada que o Governo deseja alcançar. É como se…
Hoje é o Dia do Soldado. Honras lhe sejam feitas, porque lhe são devidas. Sem sua presença, não teríamos alcançado ser o que somos. Contra ele, chegamos a um patamar de “inteligência”, de “segurança” e de “defesa nacional” cujo modelo preconizado e realizado, no século passado, absolutamente esdrúxulo, modelo típico de não-soberania, era a Costa Rica. Na falta dele, talvez bem logo cheguemos, no máximo, a uma extensão territorial equivalente. Que alguns muitos considerarão mais conveniente, menos preocupante, menos aborrecida. O que não deixa de ser uma expectativa de futuro…
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(*) http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/RELACOES-EXTERIORES/424628-LIVRO-BRANCO-DE-DEFESA-NACIONAL-VAI-AUMENTAR-SEGURANCA-DO-PAIS,-DIZ-GENERAL.html
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