Uma estaca é uma “peça estrutural alongada, de madeira, aço ou concreto, que se crava no solo”. Um poste é uma estaca.
Lembro-me, de quando em quando, de uma canção que foi muitas vezes entoada nas esquinas, nos bares e nos lares catalães e também nos grandes palcos internacionais durante os anos 70 próximos passados. Essa canção foi traduzida em diferentes idiomas e ainda hoje inspira diferentes movimentos de reação política. Intitula-se “A estaca”. A longa letra começa assim (na minha tradução, sem respeitar a métrica): “Vovô Siset me falava, bem cedinho, enquanto, à porta, esperávamos o sol e víamos os carros passar. Siset: – Não vês o poste em que estamos todos atados? Se não o pudermos derrubar, nunca poderemos caminhar. Se todos puxarmos, ele cairá, e muito tempo não pode demorar. Certo é que tomba, tomba, tomba, bem carunchado ele já deve estar. Se eu o puxo com força por aqui e tu o puxas com força por lá, certo é que tomba, tomba, tomba, e nos poderemos libertar. (1)
Nos anos 70 do século passado muita gente vivia muito insatisfeita com a política. No mundo todo. Hoje, muita coisa mudou. No mundo todo. Mesmo assim, muita gente no mundo todo tem razões de sobra para estar muito insatisfeita, pois bem sabemos como as coisas vão indo – elas vão indo muito mal das pernas. Tal como naquela década, o mundo está mergulhado em uma crise; mas não só está mergulhado em mais uma gravíssima crise econômica, mas principalmente em uma extraordinária crise de valores – que não há como não interpretar como sendo a principal causa da crise econômica. E o que também diferencia a crise de ontem da crise de hoje e mais a agrava é que as expectativas se alteraram.
Antes, havia a convicção generalizada de que a “politização” de tudo arrancasse o povo do marasmo que uma fé cega nas autoridades constituídas ou nas lideranças boas de palanque provoca; e não só havia a esperança de que tudo se resolvesse ao serem derrubadas as estacas (os postes) da política, que mantinham o Estado, com o sacrifício dele mesmo, a serviço de alguns setores da população em detrimento dos demais, como a de que políticos de fato representativos dos interesses da população os substituíssem. A experiência demonstrou que tudo isso era uma fantasia. E toda essa expectativa foi por água abaixo. Os postes mudaram de cor e não só continuam sendo reverenciados como a população desistiu de exigir das autoridades o decoro, a coerência e até mesmo a inteligência. O que vale é a esperteza, o que vale é a propaganda. E cada vez mais se afirma a convicção de que política é algo sujo, de que não convém cuidar – cuide-se de retirar-se dela o máximo de proveito e de salvar-se dela quem puder.
O problema muito se agravou porque, no processo da tão desejada “democratização” dos regimes políticos, muitos entre os muito bem intencionados sabiam exatamente o que não queriam; mas, além de poder repetir em forte e bom som, sem sofrer qualquer tipo de censura ou repressão, amplas e vagas palavras-de-ordem tais como “serviços públicos de qualidade” etc. etc. e tal, “anistia” para honestos e desonestos terroristas e ladrões e seus apoiadores, e “liberdade” para o comércio de drogas e o de produções culturais de estímulo a um erotismo vulgar sem limites ou fronteiras, a grande maioria deles não tinha a mais mínima idéia do que pudesse querer alcançar. Nem qualquer idéia do que deveria fazer além de reclamar.
E hoje? Alguém tem, disso tudo, alguma idéia?
Palavras-de-ordem são para mobilizar, não são para serem cumpridas. No Brasil mobilizado, entre apagões, campeonatos esportivos, cotas, bolsas-família, demais bolsas-disso, daquilo, daquilo outro, prestações, juros e viagens de recreio ao exterior, as novas e as velhas classes médias, de A a Z, vão sobrevivendo galhardamente às eleições ditas livres. E o que se ouve, dos revolucionários Partidos de oposição ao revolucionário Partido da situação em nível federal, muito me tem lembrado aquela já antiga canção catalã.
Não por acaso, a manchete de hoje da Folha de S.Paulo é “Onda de mudança marca a eleição nas grandes cidades”. O jornal comenta que “uma onda oposicionista mudou a cara do poder nas maiores cidades do Brasil. Governistas perderam as eleições de anteontem na maioria das 85 cidades mais importantes, onde estão 37% dos eleitores do país” (2). Convenhamos em que essa “onda de mudança” já teria sido antecipada pelo julgamento do “mensalão”. Mas, se a maioria do STF, inclusive Barbosa, o relator-justiceiro, foi nomeada por Da Silva e Rousseff que eram apoiados pelos “mensaleiros” condenados, esse Tribunal é “situação” ou faz “oposição” ao Governo? E Genoíno, condenado no STF, que “ganhou apoio do partido para reassumir uma vaga na Câmara dos Deputados a partir do início de 2013” (3), deve ser considerado “oposição” ou “situação”? A vaga que lhe foi aberta como suplente renova ou mantém a Câmara que cassou Dirceu em conchavo permanente?
Na capital paulista, o “poste” recém-eleito, em um discurso digno de candidato à presidência de centro-acadêmico, afirmou: “Fui eleito pelo sentimento de mudança que domina a alma do povo de São Paulo. Sei da enorme responsabilidade de todos que são eleitos pelo signo da mudança…. se São Paulo não conseguir resolver seus problemas, que cidade no Brasil e no mundo conseguirá fazê-lo? O fracasso de São Paulo seria o fracasso desse genial modelo de convivência que a humanidade desenhou ao longo dos séculos para sobreviver e ser feliz. Essa invenção insuperável do gênio humano, que se chama cidade.” (4)
Entenderam a alegoria? Ah, que bom… Que significariam essas palavras? Apenas um fraseado nanomegalômano ao estilo Collor, FHC, Lula? Não, é mais complicado e talvez bem pior. É um “Europa, França e Bahia” traduzido ao paulistês: “Europa, França e… São Paulo”. É um cacoete recorrente na província (noves fora, ou seja, periferia fora), à falta de coisa mais consistente a ser dita. O refrão do velho e gasto samba-enredo que continua indo para a avenida sob os aplausos às piruetas do porta-estandarte da vez. Sempre composto em acordes de mudança maior, revezando-se “oposição” e “situação” na harmonia, sem dissonância. Aliás, a notícia do dia seguinte à eleição seria a da criação de um grupo de trabalho para promover a interlocução entre o governo federal e a equipe de transição da prefeitura paulistana (5).
Não é assim tão difícil ser um profeta. Seria, por acaso, de estranhar imaginar que, “se a economia não reagir no próximo biênio, os sonhos continuístas da presidente Dilma Rousseff poderão enfrentar dificuldades”? Não é meio óbvio que, “Se há uma lição política a tirar do que vem acontecendo na Europa, é a de que crises econômicas mais fortes têm o dom de transformar qualquer coisa que se pareça com oposição em situação. E crises de maior profundidade acontecem”? (6) Não será meio óbvio também que crises políticas mais fortes terão o dom de transformar qualquer coisa que se pareça com situação em oposição? E que crises de maior profundidade aconteçam?
Pois bem. Já em Campinas, o maior centro de pesquisa e desenvolvimento tecnológico do País, mesmo tendo sido puxado pela dupla Rousseff & Da Silva vestida de vermelho do alto do carro de som e com toda a bateria da escola segurando o ritmo… o sambão do Planalto não pegou. Assim foi. Em Campinas, tal como em algumas outras cidades do País, o eleitor percebeu que o poste estava podre. Alguém o puxou daqui, outro alguém o puxou de lá, e ele tombou. Tombou.
Tombou? E agora? Ainda não sabemos o que nos está por vir? Nem podemos imaginar? Tudo vai mudar? Ou tudo continuará no mesmo tão seguro e conhecido caminho?
Pensando bem… não nos estará faltando mais alguma coisa?
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~ ARTE URBANO – ANTONIO MARIN SEGOVIA ~
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1. L’avi Siset em parlava // de bon matí al portal // mentre el sol esperàvem // i els carros vèiem passar. // Siset: – que no veus l’estaca // on estem tots lligats? // Si no podem desfer-nos-em // mai no podrem caminar! // Si estirem tots, ella caurà // i molt de temps no pot durar, // segur que tomba, tomba, tomba, // ben corcada deu ser ja. // Si jo l’estiro fort per aqui // i tu l’estires fort per allà, // segur que tomba, tomba, tomba, // i ens podrem alliberar. … – L’ESTACA, de Lluís Llach, 1968
2. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/
3. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/75096-condenado-genoino-quer-assumir-vaga-de-deputado.shtml
6. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/75001-mensagem-das-urnas.shtml
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