Nunca considerei a “Constituição cidadã” o “menor dos males possíveis”. Nem poderia considerar.
Desde sempre considerei seu objetivo como sendo, literal e escancaradamente, o fim da picada. Com ela, deu-se início à caminhada, curta, mas desenfreada, rumo a esse específico fim, ao qual hoje chegamos. Não há mais como seguir em frente, nem virando à direita, nem virando à esquerda, nem mantendo-se ao centro. E não há volta possível, porque a picada, ao ser trilhada, era cuidadosamente coberta de armadilhas entre as quais um matagal cerrado se formou. Resta-nos apenas nos sentar no chão e assistir à implosão do Estado brasileiro. E bater palmas ao espetáculo e aos personagens responsáveis por ele.
A começar, insisto, do seu Título I, Art. 4º, Parágrafo único – “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”, de iniciativa de quem não sei, ao qual ninguém se opôs – a “Constituição cidadã” se demonstra a qualquer um que saiba ler como sendo o resultado de um campeonato absurdo em que a sensatez – ou seja, o pensamento minimamente voltado às reais questões nacionais – perdeu todas as partidas. E as terá perdido não em campo, mas por abster-se delas, por ver-se absolutamente ausente. Perdeu todas, ainda que os times que se faziam presentes fossem de várzea.
Tanto quanto o PT disse à época, mas por razões diametralmente opostas às do PT, diria e digo eu que “não assinaria aquela coisa”, jamais, de jeito algum. Coisa que parece ter saído da mente doente de um roteirista de filmes de terror de 3ª categoria, coisa insensata, irracional, que é responsável por todos os males que atravessamos desde que foi promulgada “grávida de direitos e infértil de deveres”, tal como diz o texto abaixo, que vale a pena ler.
Seus incontáveis remendos apenas refletem o agravamento, que ela mesma permite, de “um alarido de proporções nacionais em favor de teses” estúpidas, na ordem econômica, e populistas e demagógicas na ordem social e em tudo mais.
Discutir esse arremedo de Constituição e propor que seja colocado um número cada vez maior de esparadrapos nas feridas expostas e purulentas do Estado brasileiro é não mais que mais perda de tempo.
Só não sei ainda por que razão aqueles que se consideram minimamente sensatos não decidiram voltar-se contra esse texto letal, do qual se armam cotidianamente os inimigos da sensatez, na sua totalidade; e não tratam de tentar discutir e produzir uma Constituição minimamente decente que reflita a intenção de que um Estado minimamente decente possa ser reconstruído e a de que ele possa desenvolver-se de forma minimamente decente. Possivelmente porque são pachorrentos e/ou insensatos o suficiente para que se sintam desobrigados ou impedidos de fazê-lo.
Se alguns ousassem, um mínimo que fosse, pelo menos teríamos uma discussão de fato política neste nosso País e não esse lero-lero encruado, provincial, de quintal, infernal, a tentar nos distrair entre uma eleição e outra, enquanto profissionais da politicagem nos “governos” de faz de conta se sustentam com recursos remanescentes de um Estado já morto, mas ainda insepulto, e “oposições” de faz de conta nos estimulam a cavar, sempre cada vez mais fundo, sem sair do lugar em que estejamos sentados e a, nesse mesmo fosso que nós mesmos cavamos, com ele, o nosso Estado, nos enterrar. A enterrar todos nós, os insensatos, os ditos sensatos e os que se consideram sensatos.
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AOS QUE SABEM “DE OUVIR DIZER”
Percival Puggina
Vinte e cinco anos se passaram desde a promulgação da Constituição Federal. Um nada, na linha da história. Um vapt-vupt, na existência de cada um. No entanto, o leitor talvez se surpreenda ao saber que, segundo a pirâmide etária brasileira de 2010, apenas 31% dos cidadãos brasileiros de hoje tinham 18 anos ou mais naquela data. Portanto, sessenta e nove por cento sabem do processo constituinte de 1988 apenas por ouvirem dizer. E em questões de política e história recentes, saber por ouvir dizer, beber de solitária fonte, é das piores maneiras de ser informado.
Surpreendeu-me a afirmação de Lula sobre a participação de seu partido na Constituinte. Segundo ele, se tivesse sido aprovada a constituição que o PT queria, “o país seria ingovernável, porque nós éramos duros na queda e muito exigentes”. Com efeito, o PT da Constituinte detestou tanto o texto final que votou contra. Não satisfeito, anunciou que sequer iria assinar aquela coisa. Denegrindo a carta e seus autores, os petistas espalharam pelo país seu escândalo ante o “conservadorismo” do texto. Por um triz os deputados do partido não rasgaram as vestes na Praça dos Três Poderes. E só após muitos apelos de Ulysses Guimarães, consentiram em acrescentar seu precioso jamegão à Carta Magna. De nariz torcido, claro.
Quem lê estas linhas em 2013 deve estranhar o fato de o PT haver sido derrotado pela maioria em 1988. Pois mais ainda o surpreenderá saber que para aquela importantíssima legislatura o partido de Lula conquistou apenas 16 das 487 cadeiras existentes à época na Câmara. E não elegeu um único senador. Os parlamentares do PT, PCB, PCdoB, PSB e PDT, somados aos esquerdistas do PMDB, compunham pequena minoria naquele plenário. Mas o reduzido grupo, liderado por José Genoíno e Roberto Freire, com apoio da CNBB, produzia um alarido de proporções nacionais em favor de teses comunistas na ordem econômica, socialistas na ordem social, populistas quase sempre. E demagógicas em tudo. Dá para reconhecer o estilo?
Poucos, hoje, terão ouvido falar do “Centrão”, o grupo de congressistas que se organizou para que houvesse um mimimum minimorum de racionalidade no novo texto constitucional, opondo-se às teses da esquerda radical, muito minoritária, mas muito organizada. Este último grupo dispunha, em seu favor, de notável suporte da mídia militante, que execrava o Centrão e o servia à opinião pública como Salomé, na bandeja das coisas odiosas, articuladas com as mais nefastas e malignas intenções. Abro parêntesis: é bom que se diga, a bem da verdade, que o Centrão não foi sempre majoritário e que as cisões eram frequentes no bloco diante das pressões desencadeadas de fora para dentro do plenário e das comissões. Fecho parêntesis. Assim, em 1988, a sensatez perdeu inúmeras partidas e o Brasil ganhou uma Constituição grávida de direitos, infértil de deveres. Nos anos seguintes presenciaríamos inesquecível surto inflacionário e depois, uma escalada tributária que persiste ainda hoje entre as mais altas do mundo.
A intenção deste artigo, quando se comemoram os 25 anos da Constituição, é sublinhar o reconhecimento de Lula aos pecados de seu grupo no processo constituinte de 1988. Ao declarar que as propostas petistas tornariam o país ingovernável, ele admite ter sido bom que não hajam vingado. Mas elas não vingaram graças a resistência dos bravos que decidiram pagar o preço da impopularidade para que a Carta, enfim aprovada, fosse o menor dos males possíveis. Na contramão, 14 anos mais tarde, com as mesmas teses comunistas (na economia), socialistas (no social), populistas (em quase tudo) e demagógicas (sempre), o PT se tornou o maior partido político do país.
Com ele, muito distante de qualquer sinal de contrição, prosperou seu exército de falsos “progressistas”. São, entre outros, os fazedores de cabeça no meio escolar e universitário. E são os manipuladores da informação na mídia, das consciências em templos e da Justiça em tribunais.
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* Percival Puggina (68) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, colunista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões, membro do grupo Pensar+.
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