PORQUE O BRASIL É O MEU PAÍS

 

 

 

 

     Ivan Lins, compositor e cantor da MPB, declara-nos que não morre de amores pela revista Veja.

 

    Até aí, nada. Muita gente não morre de amores pela revista Veja. Nem eu mesma morrerei de amores por ela.

 

    Comento o que disse Ivan Lins (no facebook) porque, do pouco que sei dele, sei que, em 1980, ele celebrava a chegada de um “novo tempo”, que eu nem celebrei nem tinha por que celebrar e bem sabia disso; inspirado exatamente por quem ou por que ele celebrou, isso não sei, não sabemos, só Deus sabe.

 

    Dizia-nos ele em belos versos e boa melodia: “No novo tempo, apesar dos castigos / estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos / pra nos socorrer / No novo tempo, apesar dos perigos / da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta / pra sobreviver / Pra que nossa esperança seja mais que a vingança / seja sempre um caminho que se deixa de herança / No novo tempo, apesar dos castigos / de toda fadiga, de toda injustiça, estamos na briga / pra nos socorrer / No novo tempo, apesar dos perigos / de todos os pecados, de todos os enganos, estamos marcados / pra sobreviver / No novo tempo, apesar dos castigos / estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas / pra nos socorrer / No novo tempo, apesar dos perigos / a gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça”.

 

    Sobreviver, sim, bem ou mal, sobrevivemos. Talvez porque estivéssemos marcados pra sobreviver.

 

    De lá pra cá, porém, que fizemos? Só fizemos mostrar que não estávamos crescidos, não estávamos atentos, não soubemos como nos socorrer, não descobrimos por que deveríamos estar em cena, na briga, na luta, e estamos hoje à mercê de força bruta, injustiça, perigos, pecados, castigos, algemas, fadigas, vinganças, em nosso caminho já não nos restando muitas esperanças de deixar algo de bom como herança e, muito em breve, não estaremos mais vivos… Deu tudo errado. O tal “novo tempo” só nos trouxe muita estupidez e muitas aflições. E, mesmo assim, muitos ainda acreditam que fazer pirraça e cantar na praça é algo muito produtivo e gratificante. Talvez porque fazer pirraça seja bom, bonito e barato, ou seja o que, de tudo o que poderíamos ter feito, que não fizemos, e continuamos não fazendo, nos sobrou pra fazer. Sei lá.

 

    Nunca morri de amores por Ivan Lins. Mas apreciei, de verdade, muitos dos versos e algumas das melodias que trouxe a público; que, sem badulaques performáticos, estariam do tamanho certo. Como a maioria dos compositores da nossa geração, ele surfou na onda das “canções de protesto”; faturou também com as dores de cotovelo femininas; mas, também de verdade – desconsiderados um ou outro excesso, tal como um “O amor é o meu País”, que me soava não só muito alienado como muito desaforado, aquelas suas caretas exageradas e uns gritos fora de hora e de lugar, ao estilo “latin jazz” (?!?) revisitado, que me agrediam os tímpanos –, posso entender que ele sempre manteve certa dignidade profissional. E que tem certo estilo.

 

    Mas o que importa disso tudo é só o seguinte: mais maduro, mais calejado, como todos nós, os que nascemos nos “velhos” e vivemos os “novos” tempos, que ensaiamos entoar suas canções em festivais, em reuniões da turma, nas estradas para espantar o sono ou mesmo só debaixo do chuveiro, Ivan Lins nos recomendou, há alguns dias, que fizéssemos uma leitura.

 

    Mostrou que respeita a inteligência alheia. Mostrou que tem juízo. Pelo menos, que tem bastante mais juízo que a maioria de seus pares contemporâneos, que continuam batendo na mesma tecla desafinada lambuzada de visgo de jaca e dela não conseguem se desgrudar, e continuam celebrando o tal do “novo tempo” que teria sido inaugurado na década de 80 do século passado…

 

    Quem sabe se esta recomendação de Ivan Lins não é um sério indício de que alguns de nós percebem que ainda há tempo de fazer algo de bom com todo o tempo que nos resta à frente?

    Sou otimista? Sempre fui…

 

    E, aqui, pois, também recomendo o que Ivan Lins, que não parou no tempo, já nos recomendou. Boa leitura.

 

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 ivan lins 

“14 de fevereiro

Boa noite amigos,

Não morro de amores pela revista Veja, mas este artigo do J.R.Guzzo é inquietante e vale a leitura, embora mostre os problemas sem indicar saídas. Mas já é alguma coisa! Se puder, se quiser leia… Sei que é assunto pesado, pois ainda estamos no clima de carnaval, oleoleoleolê! Mas se vc está a afim de pensar um pouco, de tomar alguma atitude depois da folia, leia sim. Afinal, meu Deus do céu, que país é esse afinal em que estamos vivendo… Se puder, leia. Vale a pena. E depois, respire fundo, faça meditação, ou vá correr na academia, ou procure alguém bacana e positivista para conversar… ou simplesmente chore até sair tudo. Ou então não leia. Mas entenda o porque da minha foto com a tarja de luto que também é pelas vitimas de Santa Maria, pela desfaçatez de certos políticos, certas roubalheiras, certas impunidades, mas, neste momento, por esta realidade longa e cruel exposta nesta matéria, infelizmente muito longe de ser inverídica.

Grande abraço

Ivan

 

Namorando com o suicídio

Autor: J.R.Guzzo – Veja – 28/01/2013

 

Se nada piorar neste ano de 2013, cerca de 250 policiais serão assassinados no Brasil até o próximo dia 31 de dezembro. É uma história de horror, sem paralelo em nenhum país do mundo civilizado. Mas estes foram os números de 2012, com as variações devidas às diferenças nos critérios de contagem, e não há nenhuma razão para imaginar que as coisas fiquem melhores em 2013 — ao contrário, o fato de que um agente de polícia é morto a cada 35 horas por criminosos, em algum lugar do país, é aceito com indiferença cada vez maior pelas autoridades que comandam os policiais e que têm a obrigação de ficar do seu lado. A tendência, assim, é que essa matança continue sendo considerada a coisa mais natural do mundo — algo que “acontece”, como as chuvas de verão e os engarrafamentos de trânsito de todos os dias.

 

Raramente, hoje em dia, os barões que mandam nos nossos govemos, mais as estrelas do mundo intelectual, os meios de comunicação e a sociedade em geral se incomodam em pensar no tamanho desse desastre. Deveriam, todos, estar fazendo justo o contrário, pois o desastre chegou a um extremo incompreensível para qualquer país que não queira ser classificado como selvagem. Na França, a ficar em um exemplo de entendimento rápido, 620 policiais foram assassinados por marginais nos últimos quarenta anos — isso mesmo, quarenta anos, de 1971 a 2012. São cifras em queda livre. Na década de 80, a França registrava, em média, 25 homicídios de agentes de polícia por ano, mais ou menos um padrão para nações desenvolvidas do mesmo porte. Na década de 2000 esse número caiu para seis — apenas seis, nem um a mais, contra os nossos atuais 250. O que mais seria preciso para admitir que estamos vivendo no meio de uma completa aberração?

 

Há alguma coisa profundamente errada com um país que engole passivamente o assassínio quase diário de seus policiais — e, com isso, diz em voz baixa aos bandidos que podem continuar matando à vontade, pois, no fundo, estão numa briga particular com “a polícia”, e ninguém vai se meter no meio. Essa degeneração é o resultado direto da política de covardia a que os governos estaduais brasileiros obedecem há décadas diante da criminalidade. Em nenhum lugar a situação é pior do que em São Paulo, onde se registra a metade dos assassinatos de policiais no Brasil; com 20% da população nacional, tem 50% dos crimes cometidos nessa guerra. É coisa que vem de longe. Desde que Franco Montoro foi eleito governador, em 1982, nas primeiras eleições diretas para os governos estaduais permitidas pelo regime militar, criou-se em São Paulo, e dali se espalhou pelo Brasil, a ideia de que reprimir delitos é uma postura antidemocrática — e que a principal função do estado é combater a violência da polícia, não o crime. De lá para cá, pouca coisa mudou. A consequência está aí: mais de 100 policiais paulistas assassinados em 2012.

 

O jornalista André Petry, num artigo recente publicado nesta revista, apontou um fato francamente patológico: o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, conseguiu o prodígio de não comparecer ao enterro de um único dos cento e tantos agentes da sua polícia assassinados ao longo do ano de 2012. A atitude seria considerada monstruosa em qualquer país sério do mundo. Aqui ninguém sequer percebe o que o homem fez, a começar por ele próprio. Se lesse essas linhas, provavelmente ficaria surpreso: “Não, não fui a enterro nenhum. Qual é o problema?”. A oposição ao governador não disse uma palavra sobre sua ausência nos funerais. As dezenas de grupos prontos a se indignar 24 horas por dia contra os delitos da polícia, reais ou imaginários, nada viram de anormal na conduta do governador. A mídia ficou em silêncio. É o aberto descaso pela vida, quando essa vida pertence a um policial. É, também, a capitulação diante de uma insensatez: a de ficar neutro na guerra aberta que os criminosos declararam contra a polícia no Brasil.

 

Há mais que isso. A moda predominante nos governos estaduais, que vivem apavorados por padres, jornalistas, ONGs, advogados criminais e defensores de minorias, viciados em crack, mendigos, vadios e por aí afora, é perseguir as suas próprias polícias — com corregedorias, ouvidorias, procuradorias e tudo o que ajude a mostrar quanto combatem a “arbitrariedade”. Sua última invenção, em São Paulo, foi proibir a polícia de socorrer vítimas em cenas de crime, por desconfiar que faça alguma coisa errada se o ferido for um criminoso; com isso, os policiais paulistas tornam-se os únicos cidadãos brasileiros proibidos de ajudar pessoas que estejam sangrando no meio da rua. É crescente o número de promotores que não veem como sua principal obrigação obter a condenação de criminosos; o que querem é lutar contra a “higienização” das ruas, a “postura repressiva” da polícia e ações que incomodem os “excluídos”. Muitos juizes seguem na mesma procissão. Dentro e fora dos governos continua a ser aceita, como verdade científica, a ficção de que a culpa pelo crime é da miséria, e não dos criminosos. Ignora-se o fato de que não existe no Brasil de hoje um único assaltante que roube para matar a fome ou comprar o leite das crianças. Roubam, agridem e matam porque querem um relógio Rolex; não aceitam viver segundo as regras obedecidas por todos os demais cidadãos, a começar pela que manda cada um ganhar seu sustento com o próprio trabalho. Começam no crime aos 12 ou 13 anos de idade, estimulados pela certeza de que podem cometer os atos mais selvagens sem receber nenhuma punição; aos 18 ou 19 anos já estão decididos a continuar assim pelo resto da vida.

 

Essa tragédia, obviamente, não é um “problema dos estados”, fantasia que os governos federais inventaram há mais de 100 anos para o seu próprio conforto — é um problema do Brasil. A presidente Dilma Rousseff acorda todos os dias num país onde há 50000 homicídios por ano; ao ir para a cama de noite, mais 140 brasileiros terão sido assassinados ao longo de sua jomada de trabalho. Dilma parece não sentir que isso seja um absurdo. No máximo, faz uma ou outra reunião inútil para discutir “políticas públicas” de segurança, em que só se fala em verbas e todos ficam tentando adivinhar o que a presidente quer ouvir. Não tem paciência para lidar com o assunto; quer voltar logo ao seu computador, no qual se imagina capaz de montar estratégias para desproblematizar as problematizações que merecem a sua atenção. Não se dá conta de que preside um país ocupado, onde a tropa de ocupação são os criminosos.

 

Muito pouca gente, na verdade, se dá conta. Os militares se preocupam com tanques de guerra, caças e fragatas que não servem para nada; estão à espera da invasão dos tártaros, quando o inimigo real está aqui dentro. Não podem, por lei. fazer nada contra o crime — não conseguem nem mesmo evitar que seus quartéis sejam regularmente roubados por criminosos à procura de armas. A classe média, frequentemente em luta para pagar as contas do mês, se encanta porque também ela, agora, começa a poder circular em carros blindados: noticia-se, para orgulho geral, que essa maravilha estará chegando em breve à classe C. O número de seguranças de terno preto plantados na frente das escolas mais caras, na hora da saída, está a caminho de superar o número de professores. As autoridades, enfim, parecem dizer aos policiais: “Damos verbas a vocês. Damos carros. Damos armas. Damos coletes salva-vidas. Virem-se”.

 

É perturbadora, no Brasil de hoje, a facilidade com que governantes e cidadãos passaram a aceitar o convívio diário com o mal em estado puro. É um “tudo bem” crescente, que aceita cada vez mais como normal o que é positivamente anormal — “tudo bem” que policiais sejam assassinados quase todos os dias, que 90% dos homicídios jamais cheguem a ser julgados, que delinquentes privatizem para seu uso áreas inteiras das grandes cidades. E daí? Estamos tão bem que a última grande ideia do governo, em matéria de segurança, é uma campanha de propaganda que recomenda ao cidadão: “Proteja a sua família. Desarme-se”. É uma bela maneira, sem dúvida, de namorar com o suicídio.

 

 

 

 

 

 

 

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