“Olho por olho, dente por dente” já foi, algum dia, o enunciado de uma regra social. Traduz-se, na prática, em poder “fazer justiça pelas próprias mãos”. Não mais que um resquício dessa regra institucionalmente já superada entre nós é o argumento pseudopsicológico levantado com ares de cientificismo, hoje em dia bastante recorrente, de que roubar e/ou matar se justificam quando o indivíduo que roubou e/ou matou sofreu carências na infância, tendo sido criado na miséria material e sem a atenção emocional que lhe era devida.
As regras e os protocolos são o que orienta o comportamento de qualquer indivíduo em qualquer Sociedade. Não prescindirá de regras e protocolos sequer quem busque, de fato, apenas viver em paz ou quem queira exercer, sem medo, o “direito de ser feliz”. Por isso mesmo, alguém, qualquer um, sempre há de sugerir e de procurar justificar um novo protocolo, que permita reinterpretar ou desconsiderar a regra antiga, ou uma nova regra quando tenha algum poder e pretenda, em seu próprio benefício, mas não necessariamente em benefício de todos, transformar a mentalidade dos indivíduos que o cercam e que compõem a Sociedade. Nova regra essa que exigirá novos protocolos.
Na discussão a respeito de qualquer nova regra ou qualquer novo protocolo, eles poderão ser apoiados por aqueles todos que por eles se sentissem beneficiados. E poderão ser criticados por todos aqueles que se sentissem prejudicados. Dependendo do poder, inclusive ou principalmente do poder de propaganda e o de pressão de cada um desses indivíduos interessados ou de seus grupos (imagens e notícias, discursos e declarações publicadas etc.), a nova regra se imporá ou não sobre a Sociedade. Se transformada em lei, deverá ser regulamentada. Após o que as atitudes e até mesmo as intenções de todos aqueles que a desobedeçam poderão ser interpretadas pelos Tribunais.
As regras sociais impositivas ordenam a Sociedade. E toda ordem implica uma hierarquia. Nem sempre essas regras traduzem uma boa ordem, muito menos traduzem, necessariamente, justiça. Mas, onde não há regras, não haverá ordem, nem ordem boa nem ordem má – haverá apenas a desordem, nada mais.
E democracia não é uma regra. É apenas uma utopia. Algo desde sempre virtual que acreditamos ser (ou ter sido algum dia) real e, por isso, acreditamos que devemos buscar aperfeiçoar. Ou devemos alcançar. E, se é que existirá alguma regra democrática, a única será a que nos obriga a ter respeito ao contraditório e nos obriga também ao seu exercício. Apesar das maiorias. Apesar das minorias. A palavra democracia poderá até mesmo incluir-se em uma Constituição, mas isso não a transformará em um sinônimo de “Estado de Direito”. Por isso existe a expressão “Estado Democrático de Direito”, que qualifica a expressão “Estado de Direito” que, simplificado ao nada, tendemos a compreender como sendo apenas equivalente ao Estado que tenha suas autoridades eleitas de uma forma ou de outra pelo voto, não necessariamente o voto direto. Haverá também a expressão “Estado Democrático e Popular”, que vem qualificando um Estado nem sempre regido por um Direito exatamente “moderno” (aquele que, subentende-se, regeria as relações em um “Estado moderno”…) e pretenderá significar algo específico: que as autoridades são eleitas pelo povo, seja qual for o processo que leve a isso, em exclusivo benefício do povo, seja como for que esse benefício possa ser interpretado. O que apenas vem levando o povo, por sua ignorância, a eleger, pró-forma, autoridades cada vez mais autoritárias que o mantêm cada vez mais ignorante e mais alienado.
Mas o que sobra de útil disso tudo é só o seguinte: anarquia é anarquia. Nem democracia nem Estado de Direito nem Estado Democrático de Direito nem Estado Democrático e Popular se confundirão com a anarquia, ou seja, com um estado social em que a autoridade não exista ou não seja respeitada – se e quando uma sociedade desgovernada pudesse corresponder a um Estado…
Democracia é também, portanto, democracia – outra coisa não é, embora o que seja exatamente ninguém saiba definir exceto por sucessivas definições do que não pareça ser democracia. Democracia não se resume a leis ou a falta de leis, nem a multidões gritando em praça pública, nem a multidões elegendo representantes, pois eleições dependem da propaganda dos elegíveis e o exercício da democracia dependerá, no mínimo, da lisura dos eleitos e do discernimento de quem vota. E, se conhecimento depende de contatos e de experiências, tanto lisura quanto discernimento, assim como responsabilidade, dependem apenas da conformação mental do indivíduo, independentemente do tempo e do espaço de amadurecimento.
Portanto, não é que a liberdade de todos e a de cada um possa ou deva sempre acatar ou desautorizar o governo ou sempre desconsiderar uma autoridade ou a lei, ou sempre submeter-se a elas sem resistência, mas, sim, é que os processos de constituição da autoridade e os de defesa do indivíduo, da Sociedade e do Estado devem ser cuidadosamente elaborados e, uma vez definidos, devem ser respeitados e muito bem cuidados, inclusive para que possam ser preservados, permitindo, assim, aperfeiçoar-se o processo dito democrático.
Por outro lado, encontrar ameaças onde elas não existem ou não vê-las onde elas existem também não se confunde, tampouco, com exercer democracia – não será outra coisa qualquer senão esquizofrenia. Já promover a desordem pela desordem e a impunidade pela impunidade poderá ser não mais que… patifaria.
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A chamada feita para a coluna de Helio Schwartsman na página do UOL era a seguinte: “mudança só pioraria judiciário”.
Esse colunista nos dirá, demonstrando-se muito preocupado com os critérios que informam as leis: “Como sempre ocorre quando um menor comete um homicídio bárbaro, cerca de dois terços da população erguem a voz para pedir a redução da maioridade penal. … É claro que os 18 anos encerram algo de arbitrário. Se quiséssemos fugir aos caprichos do legislador e adotar uma regra informada pela ciência, teríamos, na verdade, de empurrar o limite para além dos 20 anos, que é quando amadurece o córtex pré-frontal, área do cérebro responsável por tomar decisões complexas e controlar a impulsividade”.
Em seguida a essa explanação científica em sua aula de “moral e cívica” ao seu leitor, fará perguntas: “Já que a arbitrariedade é inescapável, por que não ouvir o apelo da população e reduzir a maioridade? Se o jovem de 16 anos já pode votar e fazer sexo, por que não haveria de responder criminalmente por seus atos? … Supondo que a maioridade baixe para 16, o que faremos quando um garoto de 15 matar alguém? Reduziremos o limite para 14, ou 10? O direito moderno começa a se distinguir melhor da velha vingança quando considerações racionais passam a preponderar sobre as emoções, por mais justas que sejam.”
Muito bem. A arbitrariedade seria “inescapável”, segundo Schwartsman. Mas seria “inescapável” por quê? Somente será “inescapável” se toda regra for arbitrária. Porque “inescapáveis” serão as regras que os indivíduos criam quando em Sociedade. Daí subentende-se que toda regra social impositiva – toda lei –, mesmo a considerada mais democrática, será caprichosa e abrigará uma arbitrariedade. Tal como o próprio conceito de justiça, seja mais racional ou mais emocional, será arbitrário. E também o conceito de crime será arbitrário. E esse arbítrio estará pautado – e justificado – única e exclusivamente no conceito de moral que a Sociedade adote e faça valer. Ou não?
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Provavelmente ou possivelmente por bem saber disso tudo, no Judiciário, o Ministro Joaquim Barbosa andou distribuindo uns “chega pra lá” em forte e bom som.
Foi, por isso, muito criticado por Jânio de Freitas.
Segundo este outro colunista, “O fundo de moralismo ao gosto da classe média assegura às exorbitâncias conceituais e verbais do ministro a tolerância, nos meios de comunicação, do tipo ‘ele diz a coisa certa do modo errado’ — o que é um modo moralmente errado de tratar a coisa errada. Não é novidade como método, nem como lugar onde é aplicado.”
Ou seja, em sua opinião, que é uma opinião particular que faz-se pública incorporando o poder da Imprensa, “o fundo de moralidade ao gosto da classe média” é “moralmente errado” e a Imprensa não deverá ter qualquer “tolerância” com as atitudes de Joaquim Barbosa que promete provocar “uma crise com ingredientes institucionais caso… progrida nas investidas desmoralizantes que atingem o Congresso e os magistrados” (leia-se “aquela gente atrasada, retrógrada, conservadora”…). E assim termina ele o que seria também uma aula de “moral e cívica”: “Afinal, quem quer viver em democracia tem o dever de repelir toda manifestação de autoritarismo, arbitrariedade e prepotência. É o único dever que o Estado de Direito cobra e dele não abre mão.”
No Executivo, por sua vez, o Governador de São Paulo “anunciou nesta quinta-feira (11) que encaminhará em 15 dias ao Congresso Nacional um projeto de lei que propõe tornar o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) mais rígido em relação a adolescentes envolvidos em casos de violência considerados graves e reincidentes.” Contra o que o Ministro da Justiça imediatamente gritou: “é inconstitucional!”
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Pois farei eu, agora, as perguntas. A quem caberia declarar a inconstitucionalidade de alguma coisa? A um Ministro de Governo que ocupe a pasta da Justiça? À Imprensa? Ao povo consultado em uma enquete? Essa é a regra? Desde quando?
E, no caso, pouco nos importa quem seja hoje o Governador de São Paulo. Ele estará investindo contra o Congresso, que tão bem deve ter legislado, e contra Magistrados que tão bem vêm aplicando a matéria legislada? Estará exorbitando de suas funções? Estará sendo autoritário? Sendo arbitrário? Sendo prepotente? Estará tratando a coisa certa de modo errado? Estará cedendo ao moralismo ao gosto da classe média? Ou vendo a coisa errada de um modo moralmente errado? Certo estará o Governo da União que, presumidamente ciente da realidade nacional, diz que quer, nas palavras do Secretário-Geral da Presidência (e aqui o verbo “querer” é bastante elucidativo), “dar ao jovem alternativas de trabalho, cultura, lazer, formação profissional; uma possibilidade que não seja o crime”?
Seria o crime uma “alternativa”? Serão criminosos todos aqueles que não têm trabalho, lazer, cultura e formação profissional porque não lhes sobra “alternativa”? Acaso um trabalho, a cultura, o lazer e a formação profissional seriam antídotos eficazes contra qualquer ímpeto e/ou qualquer projeto criminosos? Acaso todo e qualquer jovem que saia da Fundação Casa aos 21 anos e se veja sem trabalho, sem cultura, sem lazer, sem formação profissional (e com uma ficha imaculada apesar de ter roubado e/ou matado!) não mais verá o crime como uma “alternativa” a considerar? Quem garante? A bênção do Governo? O seu “querer”? O fato de não haver instalações adequadas à retirada dos criminosos do convívio com a Sociedade? O fato de que recursos que poderiam estar sendo destinados ao aprimoramento dos presídios sejam destinados à construção de estádios de futebol? A alegada boa intenção do Governo ou a boa intenção que possa ser atribuída a um criminoso? Que “alternativas” de trabalho e lazer percebem haver ao seu redor os jovens de 16 anos que “aprendem a ser gente” ao “votar e fazer sexo” livremente por serem donos de seus narizes e conscientes de suas opções conforme a cartilha distribuída pelo Governo, tendo por modelo os que são drogados e os que, sem receber qualquer punição, comercializam as drogas e/ou as exaltam, os que agridem os professores, os que ameaçam e cospem em qualquer um que tenha uma opinião divergente, os que invadem, picham e destroem propriedades privadas e públicas, inclusive as Escolas em tese encarregadas de lhes dar “cultura e formação profissional”?
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O dever que o Estado “nos cobra e dele não abre mão”, porque dele não pode abrir mão e porque de nós pode e deve cobrar, não é que esperemos, inermes e apáticos, submissos à “autoridade” da opinião dos arautos da liberdade e do bem estar de criminosos em detrimento da liberdade e do bem estar do nosso conjunto de todos, que algum deles nos venha ensinar com quem devemos ser ou não ser tolerantes e que o acatemos sem críticas. Democraticamente, devemos um pouco mais que isso ao nosso Estado, para que ele pelo menos se pareça minimamente com um Estado de Direito, aquele que nos garanta regras claras, entre elas a liberdade de opinião e a de associação. Devemos ter consciência do Estado. Devemos assumir nossos deveres. Isso é o mínimo que o Estado nos cobra de fato, porque nos pode e deve cobrar.
Assim sendo porque assim é, “quem quer viver em democracia” compromete-se, firmemente, com aplicar-se em desmoralizar qualquer atitude, qualquer intenção e qualquer discurso que, sob o argumento de poder “repelir toda manifestação de autoritarismo, arbitrariedade e prepotência”, apenas contribua com desestruturar o nosso Estado. “Quem quer viver em democracia” não aplaude o processo que nos institucionaliza uma liberdade ampla geral e irrestrita, que inclui a de mentir, a de roubar, a de matar e a de propagar a anarquia social.
E, se todos nós fizéssemos sempre bem feito o que é de fato nosso dever fazer, nenhuma razão e nenhum sentido teriam as perguntas levantadas por Helio Schwartsman; nem os argumentos de Jânio de Freitas; nem as desculpas esfarrapadas de nossos Governos cujas intenções reais desde sempre ignoramos; nem nossos medos; nem nossa revolta; nem nossas eternas dúvidas; nem…
Teriam? Não, não teriam!
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